segunda-feira, 28 de julho de 2014

SÉNIOR, E MAIS REFLEXÕES JÚNIORES

                                                 jovens que poderiam ser moçambicanos

Hoje é o “Ide” muçulmano, que altera completamente as rotinas do quotidiano em Maputo.
Vejo dois jovens muçulmanos entrarem no café de túnica comprida e lenço aferrado à cabeça como se usa na Arábia saudita e interrogo-me que sentido tem uma tão urgente necessidade em demonstrar, a), que se habita um não-lugar e, b), que a religiosidade deve exibir, seja qual for a coordenada em que manifeste, e como se borbulha fosse, a sua propensão a um “centro” que imponha às restantes miudezas topológicas, uma hierarquia. Como se o local não passasse de uma víscera apátrida que procura o jugo de um coração. O que me lembra a anedota da rapariga que chega a Nova Iorque e se apaixona ao terceiro dia por um taxista, sem saber que é o seu irmão.   
Incomoda-me que se ostente esta abstracção do espaço e dos lugares com uma voluntariedade, para o dizermos de forma corporal, à tripa forra . Afinal, onde vivem estes jovens?
Percebo então o que me incomoda em todos “os profissionais da fé”, sejam islâmicos, cristãos, judeus, budistas, hare-krishnas: a gana com que se agarram às marcas exteriores. Têm uma compreensão da religião absolutamente exotérica, frívola, inencontrável a não ser no dogma.
O que importa numa fé, a sê-la, é o que ela nos move por dentro e não a sua adesão a hábitos, aqui entendidos na ambivalência de costumes e de indumentária.
É pelo trespasse dos costumes que uma fé se manifesta, e não há absolvição para a fé que se cristaliza num ditado. Um muçulmano que se veste como muçulmano, um judeu que antes de qualquer comportamento que o valide nos exibe as suas patilhas em saca-rolhas para que não tenhamos dúvidas sobre a sua identidade religiosa, etc., etc., parecem-me criaturas arredadas de qualquer movimento de translação. De mal nutridas convicções religiosas, até – apesar das aparências.
Até a fé aprenderam de cor.
A mim, como ateu-não- sistemático choca-me esta cegueira em que se converteram as religiões, e choca-me porque isso me veda qualquer filiação séria e me priva, pois acho que há três condições para que uma vida se cumpra: o sagaz reconhecimento da felicidade na experiência que nos toca, o pendor socrático para não recearmos viver e, simultaneamente, examinarmos a vida; a humildade de experimentarmos um sentimento de re-ligação. Este último item é o que a falência das ideologias políticas e as diversas literalidades religiosas têm vindo a tornar mais sombriamente suspeito.  


Releio Che cos’è la poesia?, de Derrida, e como é natural há coisas que acolho e outras a que torço o nariz. Acho este preceito abominável:
«A economia da memória: um poema deve ser breve, elíptico por vocação, qualquer que seja a sua extensão objectiva ou aparente. Douto inconsciente da Verdichtung e da retracção
Creio que Derrida terá Celan na memória ao escrever isto mas apesar do bom exemplo não acho aceitável a lei. Bastava-lher ler a poesia hindu para se aperceber que essa medida não é universal. E um bom haiku não torna dispensável o Savitri, de Sri Aurobindo, são apenas experiências diferentes. As odes do Claudel e do Pessoa são grande poesia, apesar da sua arquitectura pouco elíptica.
Já gosto muito de outras duas asserções. A primeira:´
«O poético, digamos, seria aquilo que desejas apender, mas do outro, graças ao outro», que eu associo à porosidade com que o inesperado nos fisga, em Heraclito;
e a segunda:
«Não conhecias ainda o coração, assim o aprendes. Por esta experiência e por esta expressão. Chamo poema àquilo que ensina o coração, que inventa o coração»,
o que em meu entender pressupõe muitíssimo mais do que imaginar a poesia como acto de comunicação, de transbordo de fronteiras, etc. Para isso temos a net, as redes sociais.
Antes da poesia o humano está em estado de afonia, vulnerável e acossado; no jogo da poesia e da sua partilha há uma interioridade (nascente) que se engata e nos arranca à amnésia, à selvajaria, e que, na unicidade do poema, nos volta a sincronizar o coração com o ritmo.
Não um ritmo qualquer mas o que incorpora uma certa paixão e lê o acidente como um engenho portador de sentido. Não chega ainda a ser um conhecimento mas é uma reviravolta do caos, um quiasma onde algo começa. O que é mais que uma simples comunicação – uma “extensão” muito mais permeável ao aleatório e ao ruído - e onde a palavra nem sempre se elege nem opera como um interruptor do humano.



Hoje sonhei com haikus e tankas – nem sempre as imagens são os propulsores dos sonhos - e por isso fui para o café com Bashô e várias antologias com tankas e haikus, e ao reler As Sendas de Oku aqueles haikus pareceram-me mnemónicas. Explorar esta chave.



                              
SÉNIOR

                                  Para os velhos
tudo é demasiado.
A lágrima que embebe a fresta
na rocha pode vencer
a sede quando é tão escassa. Fim
e véspera do fim pedem
pouco, falam baixo.
Mas nós, na plenitude da idade,
na fornalha do tempo, nós? Pensai.



(Mario Luzi, versão minha) 

sábado, 19 de julho de 2014

INVENTAR A CHUVA NO MOLHADO




 Há dois modos de atacar um conto.
Uma, é mobilizar imediatamente uma escrita que nos suspende a descrença e devolve ao entusiasmo que inocula de energia a palavra, e dou dois exemplos, o primeiro com o arranque de Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes, de Mathias Énard:
«A noite não comunica com o dia. Arde nele. Levam-na para a fogueira ao alvorecer. E, juntamente com ela, a sua gente, os beberrões, os poetas, os amantes. Nós somos um povo de degredados, de condenados à morte. A ti não te conheço. Conheço o teu amigo turco; é um dos nossos. A pouco e pouco desaparece do mundo, engolido pelas sombras e pelas suas miragens; somos irmãos. Não sei que dor ou que prazer o empurrou para nós, para o pó de estrela, talvez o ópio, talvez o vinho, talvez o amor; talvez alguma obscura ferida da alma, bem escondida nos recessos da memória.»,
o segundo é a abertura do capítulo III de As Núpcias de Cadmo e Harmonia, de Roberto Calasso, onde se lê:
«Delos era um dorso de rochedo deserto, e navegava seguinte a corrente como uma haste de asfódelo. Aí, onde nem os infortunados servos se vão esconder, nasceu Apolo. Naquele penedo perdido, as únicas que pariram antes de Leto foram as focas. Havia, porém, uma palmeira a que a mãe, sozinha, se agarrou. Enterrando os joelhos na erva escassa. E Apolo surgiu. Nesse momento, tudo, desde os alicerces, se transformou em ouro. Era também de ouro a água do rio, e as folhas de oliveira. Esse ouro deve ter-se expandido para as profundezas do mar, porque fez ancorar Delos, que, desde então, deixou de ser uma ilha errante
Mas podíamos também ter citado a frase de abertura do livro: «Na praia de Sídon, um toureio tentava imitar um gorjeio amoroso.»
O outro processo envereda pela entronização imediata do leitor no enigma. É o acontece com esta anedota que conta Tcheckov: "Um homem em Montecarlo, vai ao casino, ganha um milhão, volta para casa, suicida-se".
O que temos aqui? A tensão que organiza a loucura normal. Não há quem não queira saber o que se passou para o protagonista adoptar este comportamento paradoxal.
Adianta Piglia, a quem fui buscar este exemplo, que um bom conto narra sempre duas histórias, a manifesta e a oculta (achado meio freudiano mas que a minha prática confirma).
Daí que Hemingway não desacertasse quando referia que um texto flui quase automaticamente quando achamos para o seu arranque algo de verdadeiro, o que, sublinhe-se, não significa algo de lógico mas antes o que entreabre, no espaço amorfo da rotina, outra dimensão, irredutível a qualquer função ou simetria; uma duplicidade.
Sempre que consigo “ferir” o texto logo no seu arranque, ele desdobra-se diante de mim, convulso e estruturado até ao fim, sem que, a meio, me estorve qualquer cortina opaca.
O que penso ter achado hoje para uma novela curta, ao escrever:
«Inventamos o amor para que Deus não se suicide!».
O resto é para ler depois.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

UM PONTO DE VISTA: SOBREVOO DE CAEIRO, NA ABYSMO

                                                Tapiès: o olhar que nos olha é o que nos senta


Fazia falta uma voz assim, esta, de foco nos interstícios, nas modulações com que o vivido e o raciocínio se retroalimentam. Uma voz onde ressoa - sem pôs-se em bicos de pés (e isso é magnífico) - a presciência dos oráculos, porque não dispensa a escuta, embora reflicta a partir do quotidiano, em ondulações que lhe chegam dos primórdios, dos gregos que traduziu, da combustão dos sages em que medita.
Esta parece-me um tipo de navegação pela orla do que delimita o logos, balanceada na estreita linha (ondulatória) que separa sabedoria de filosofia. Ou mantendo aberta uma janela entre as duas.
Por isso António de Castro Caeiro me lembra uma conversa perdida entre Antonio Porchia e André Comte-Sponville, dois pensadores que não temem o convívio entre a sageza e a filosofia e põem as palavras a interpelar as ideias para ver a energia que aí se solta.  
Ontem, por graça, depois de ter lido uma observação de Caeiro no Facebook, onde se lia:
“É por isso que não existe relação entre sujeito e objecto. Tudo é como o olhar fulminante de uma rapariga onde quer que seja. Há uma invasão do olhar e uma contaminação por toda a nossa vida da presença da ausência. Não há sujeito, muito menos objecto. É este TUDO O QUE ME ESTÁ A ACONTECER que define os encontros no mundo.”
desafiei-o: “isso dava uma belíssima reflexão que eu poria no meu blogue”.
E ele não só respondeu, literalmente, no minuto seguinte, enviando-me o texto que posto em baixo como me anuncia que este segmento faz parte de um livro que sairá, imagine-se, que o não sabia de todo, na Abysmo.
Fico contente. É bom saber que se pertence a uma família. E isto é que é olho.
O olho que intuitivamente adivinha - diziam-nos gregos e António Caeiro com eles - que afinal na rede de olhares é que entroncamos a individualidade que cultivamos adrede. (Ah, não perder uma oportunidade para utilizar o advérbio).
O que também comungam alguns poetas, como Juarroz, por exemplo:
«
Uma rede de olhares
mantém unido o mundo,
não o deixa cair.
E ainda que não saiba o que se passa com os cegos
hão-de os meus olhos apoiar-se numas costas
que podem ser as de deus.
No entanto
o que eles buscam é outra rede, outro fio,
que agora encobre os olhos com um fato emprestado
e precipita uma chuva já sem solo nem céu.
É isso que buscam os meus olhos,
o que nos descalça
para ver se algo mais nos sustenta por baixo,
ou inventar um pássaro
para averiguar
se existe o ar,
ou criar o mundo
para saber se há deus,
ou aceitar meter um chapéu
para comprovar que existimos.»
 
(tradução minha)

Mas o melhor é ler, o belíssimo trecho que António Caeiro nos ofertou:


Os outros

Não conhecemos a esmagadora maioria das pessoas que existem. Pertencemos a uma geração, e, portanto, também não conhecemos a esmagadora maioria das gerações passadas e das gerações vindouras.

Mas nós somos irremediavelmente com outros. Somos com os outros que, sem os adivinharmos, estiveram presentes e acabaram por desaparecer. Somos com outros que têm estado sempre presentes. Mas até os que nunca conhecemos não são nada, são dignos de registo. Sabemos que existem.

Os órfãos, os viúvos, os sobreviventes convivem com ausências mais presentes do que muitas pessoas presentes nas suas vidas.

Nós vivemos numa clareira entre gerações. Existimos espalhados entre o que a pessoa mais velha que conhecemos viveu e a pessoa mais nova que encontrarmos, quando estivermos no limite da nossa idade.

Os mais velhos que apanhamos no princípio da nossa vida já não estão cá. Ainda nos lembramos do que contavam das suas juventudes. Transportaram-nos para tempos idos que já só existiam nas suas cabeças e agora também nas nossas. Quando formos velhos e contarmos a uma criança como fomos na juventude, damos-lhe a conhecer um conteúdo que não viveu em directo e ao vivo, mas a que tem acesso de alguma maneira. A criança há-de sobreviver-me.

Mas existimos também na contemporaneidade dos nossos. Os nossos amigos, parentes e familiares não são apenas vidas que estão incluídas nas nossas ou aí ao pé de nós.

Cada olhar do outro modifica a constituição do meu. Não apenas vinca e sublinha conteúdos como os apaga e faz esquecer.

O meu próprio olhar é o do outro. Quando alguém morre apaga-se esse olhar e as coisas todas estão nuas porque estão despidas do revestimento do olhar do outro.

Há momentos de ausências, quando vão às suas vidas. Há momentos de reencontros: à noite ou no próximo fim-de-semana. Ou um qualquer dia.

Há muitos encontros, invasões do nosso olhar pelos outros. Há muitos desencontros e mortes. "No primeiro olhar, a promessa. No primeiro olhar, a despedida." Estamos com os outros que estão prestes a deixar de ser. Estamos com os outros que vieram, estiveram e foram-se.

Vivem vida fora. Às vezes sabemos deles, mas a esmagadora maioria do tempo vivemos pela ausência deles: uma ausência com corpo e volume, esmagadora, um buraco negro. O nada que nos deixaram.

Somos esses outros todos através dos quais projectamos as nossas vidas. Carregamo-los mortos, cegos, mudos, no silêncio das suas ausências.


Caleidoscópio

1. Uma sala apinhada de gente. Custa a entrar. Sente-se todos os olhares em cima de si. Sente-se despido. Se fosse a peso, carregava todos os olhares que o miravam. A timidez era incontrolável. Não era medo de nada, era apenas medo da exposição e vulnerabilidade. Tudo era inóspito.    

2. A sala apinhada de gente. Tinha estado lá fora à espera. Não por ninguém, ou por que a sala enchesse. Gostava de aumentar a ansiedade criada pelo momento da antecipação. Sentia a garganta gelar e picos de adrenalina. Entrava, e os olhares não intimidavam, inchavam-no. Cheio de si e sem peso: crescia à altura de todos os horizontes abertos por todos os olhares na sua direcção.    

3. Ninguém tinha dado por que lá tivesse estado, contudo. Tudo coisas da sua imaginação.

4. O olhar anónimo dos estranhos que passam a rua, que estão na esplanada, de fim-de-semana, na sala de aula, no restaurante, na praia imensa, de férias. A presença do ceguinho que pede no metro. É sempre o mesmo? O olhar anónimo lá no trabalho, lá no ginásio, lá na rua e no bairro. O olhar revisto de quem não temos visto e por isso não nos vê. O olhar que nos ignora de quem nos dá um encontrão e nem pede desculpa. Os olhares indiscretos de quem não sabemos que, ou se, nos olha ou vê. O olhar de 60.000 espectadores de futebol in loco, ao vivo, e dos telespectadores em todo o mundo.

5. Também espreitamos. E escondemo-nos. Tornamos visível o que o outro acha invisível: na emboscada erótica e polémica.

6. A presença anónima das vidas passadas. O que pensaria o avô? E a avó? E o amigo R. da infância? A presença de um olhar invisível a quem somos vulneráveis, sem metafísica a não ser a natural.

7. A ausência total de olhar. A ausência total de si? Ou só do olhar de alguém? Quem?

8. Quem levantamos com o nosso olhar? Quem negamos quando fechamos os olhos?

9. Coup de foudre: olhar e ser olhado, ver e ser visto. Sem somatório: um par de olhos mais um par de olhos. Não. A vida: totumanalyticum. O todo é mais do que a soma das partes. Hendiadyoin. Como ela era... Como nós éramos. Como eu era.

10. "Der König Oedipus hatein Auge zuvielVielleicht." ("O rei Édipo tinha um olho a mais, talvez"), Hölderlin. InlieblicherBläue.


Viuvez

Eu hoje vi-me. Estava diferente. Lá ao longe, dobrou uma esquina e desapareci. Fui a Oriente, atravessei a cidade toda. Não ia lá há tantos anos.

Onde fica uma parte da cidade, quando lá não vamos? A sua localização geográfica não é a sua forma de acontecer. É onde alguém vivia e o que lá íamos fazer tinha sentido. Quando deixa de ter sentido e deixamos de ir ter com alguém, essa parte da cidade desaparece, não vamos lá fazer nada, e com a pessoa esse alguém volta ao campo da latência, à letargia.

Passei pela escola da infância e há ainda muitas vozes de todos os que eu fui: no colégio, na natação, nos bairros da escola e da piscina. São camadas diferentes e não coincidentes, mas que ficam confusas na nebulosa da memória. Quando foi que isto e aquilo me aconteceu? Onde estão toda a multidão de eus que eu fui e sou, explodidos por tanta gente, a habitar mundos de sentido que ressuscitam quando os revisto e adormecem quando me afasto.

Às vezes Lisboa toda é latente e eu letárgico. Mergulha para onde? A cidade inteira transita para um campo da lucidez e submerge escondida. Eu sou a representação que os outros têm de mim e há tantos eus quantos os outros sujeitos de representação.

Também eu mergulho para um campo de latência, submerso no esquecimento de alguém. Eu sou esquecido por alguém, desapareço para alguém. Fui.

É assim que os outros se apagam, no tudo que representavam representam nada: sombras na escuridão, vultos sem rosto, uma multidão de sombras de vidas passadas que coincidiram outrora com a minha. Estão desaparecidos os outros que estiveram comigo e todos os eus e os si próprios de mim.

Que é feito delas? São felizes? Estarão vivas essas pessoas todas do meu passado a serem minhas contemporâneas.

E nós quando não somos representados por ninguém que somos? Quem nos acende e ressuscita? Quem nos dá o ser ao ter-nos por perto? Quem é esse quem? Quem nos nomeia? Que olhar é esse?

Um ponto de vista de nenhures? E somos nós representados pelo pensamento de ninguém? Podemos ser ninguém para ninguém? Podemos estar numa abertura de ângulo cego. Tudo o que é decisivo pode estar tapado e os outros não aparecem. Nem eu próprio me enxergo. E praças da memória cheias de pessoas que puderam ter sido e que são fantasmas apenas presentes no passado, que não ouvem o que lhes dizemos, olham para nós e não nos reconhecem. Outras vidas de outras vidas. Sou também o seu fantasma. Somos os fantasmas das vidas dos outros. Se calhar nem nunca encarnamos nem fizemos corpo com ninguém. Ou então só nos encontramos com alguém no seu corpo sem chegar à sua alma.

Eu hoje vi-me. Estava diferente. Lá ao longe, dobrou uma esquina e desapareci.

Os gregos diziam que cada ser humano era "viúvo de si próprio."

terça-feira, 15 de julho de 2014

LANCELOTE E A CRUZADA CONTRA O REI ARTUR



                                                                                                               para a Ana Maria Pereirinha

Várias vezes escrevi sobre o Herberto e nenhuma bem, e creio que também não será desta que melhorarei a minha performance. Porque não basta ter vontade e parafrasear o que nos escapa, nem isso traz consolo à evidência duma inteligência lacunar. Não admira que por isso me espante o carácter peremptório do que leio.
Vem isto a propósito de um texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto Helder, saído no «I» e replicado no seu blogue, O Melhor Amigo, crónica de execução, eivada de um tom com que não posso estar mais em desacordo.
Não li ainda A Morte sem Mestre e, apesar da curiosidade, não sofro de ansiedade. Acho que quase todos os livros são dispensáveis e creio, como Robert Lowell, que foi um dia feliz para Satã quando Mallarmé declarou que o mundo cabia num livro. Isto deixa-me mais à vontade para dizer que acho impossível que Herberto tenha escrito um “mau” livro, um livro “desprovido de magia”.
Há é vários tipos e graus de magia.
Um homem envelhece e já “não dá quatro por noite”, é ultrapassado aos vinte metros por qualquer pintainho zarolho, e percebe finalmente que na sua retorta alquímica fabricou tinta dourada mas não ouro.  E di-lo, com toda a honestidade que acarreta o seu verbo magnificado por um uso onde nunca defraudou. 
Agora, não é plausível que face à sua nova condição lhe exijam que repita o seu reportório ou que seja estanque à experiência de estar acossado pela morte. É um livro rude, direto? Bastava seguir a sugestão fonética que o remete para Le Marteau sans Maître, de René Char, para entender que desta vez, como um furibundo Nietzsche, o velho vate, resolveu ser intempestivo, fazer poesia à martelada. Golpe contra golpe, retirando o verso do seu território de segurança, jogando contra a noite a insónia, contra a anestesia da sageza a ferocidade da dor. 
A mim parece-me uma indagação radical, da base e do cimo, uma forma de neutralizar a atracção dos ímanes, e depois vida é isso mesmo: mudança, sob um capitoso desprendimento.
Tenho passado os últimos dias a ler com as minhas filhas de sete e dez anos As Mil e Uma Noites. Tem sido uma festa, eu faço as vozes e lanço as canas e elas apanham os foguetes e reciclam-nos para que eu os volte a atirar. Perco nisso uma hora e meia por dia, que arranco à escrita do romance em que ando mergulhado. Há uns anos atrás eu não o faria. Acharia que perdia tempo e que a minha “obra” não admitia esse desvio de energia. Agora estou-me nas tintas para a “obra”, escrevo-a quando me diverte, e o mais importante é conseguir fazer passar aquela corrente e as miúdas ulularem, divertidas. E que me exijam todos os dias esse ritual. Eu sou apenas um elo.
Somos elos, não a cadeia inteira, nem a montanha mais alta de uma cordilheira. Na cordilheira seremos sempre o vale, onde as águas confluem. A idade ensina-nos que nem tudo o que se inclina é para subir e que vezes há em que cá em baixo fulgem as iluminações.
Porém quando somos novos é-nos insuportável que não nos deem importância, que os nossos princípios não sejam tomados por pedra angular. É o mesmo quando a velhice nos torna rígidos em certos princípios, o contrário do que pelos vistos manifesta Herberto, que não se importa de se mostrar luxuosamente contraditório.
As três coisas que me entristecem no texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto:
- que ele confunda tão precipitadamente a opinião com o conhecimento – esquecido de que lhe estão ainda vedados  os cinquenta anos que o separam do vate; tendo pela frente a longa viagem que, com
as modulações inesperadas que a vida inocula na escrita, lhe desenganará todas as teses;
- depois, que, numa projecção algo heróica, exija ao livro que cumpra uma “via correcta”: fiel ao que ele, Diogo, acharia pertinente como “continuação” da obra herbertiana, em vez de escutar no livro a sua respiração fanhosa, a materialidade com que é ali exposta uma particular vulnerabilidade;
- por fim, o que no Diogo tem sido infelizmente recorrente, que olhe para o mundo a partir da perspectiva de um entomologista – altaneiro, superior –, como se ele, insusceptível de crítica, um eleito, fosse o último dos “puros”, investido pela missão de manter a piolheira sob vigilância e à mercê da lente com que foca o «asco».
Eis que o Herberto, coitado, sucumbiu a esta nova zona categorial – encontrou a sua «ascuidade».
Custa-me engolir que, ainda que o livro fosse menor (não sei, não o li), falte ao Diogo a sensibilidade para perceber que o Herberto, por tantos exemplos sublimes que nos ofereceu, não merecerá,  aos oitenta e picos, que um jovem lhe cuspa na fronha que ele já não passa de um eunuco, de um ouro convertido em lata.
Porque, afinal, será o Herberto o Dantas de Vaz Pinto? Há aqui uma desproporção inacreditável e não se descortina o fundo da vanidade deste exercício. Repita-se, será o apelido de Herberto Dantas? Ou a sua simetria: terá Diogo as qualidades de um Negreiro?
No texto de Diogo ficamos a saber mais sobre o que ainda lhe sobra de arrogância infantil do que aquilo que convinha quanto aos antídotos que ele nos pode transmitir em relação aos modos como reagir à morte, à decadência, e aos ímpetos de cobardia com que a senectude nos verga. Afinal, onde se situa o lugar de onde nos fala, com escusada presunção? Não se descortina.
Faltou talvez à sua leitura aquilo que, pelo pouco que já li, é mato no livro: a humildade de reconhecer os limites, que não somos só urdidura, estilo, abstracção, distância, alquimia e acabamento, mas desequilíbrio, pathos, diarreia, carne viva, dor, inacabamento, e por isso palha demasiado humana.
Detecta-se no seu texto, para além duma falta de urbanidade (enfim, uma equidistância, se temos de facto tanto escrúpulo em endereçar um gesto, um carinho), uma ingratidão profunda, mesquinha.
Não estará o livro à altura do estatuto do velho leão e do seu lugar na história da literatura? Talvez. Não li. Mas isso não importa sequer: creio que o Herberto neste momento caga para esse desiderato, que, pelo contrário, se deixou de poses e depôs a máscara: é um ser falho e carecido de amor, como todos.  E di-lo: até a merda da poesia o trai, a ele que tanto traiu em seu nome. O Herberto grita, implora com susto, que a poesia lhe ensine a cair? Até aqui planava sobre o terreno – aterrou. É um crime ter medo de morrer? Não creio que isso lhe retire um grama de dignidade. Mais: um mau Scorcese é sempre melhor que todos os bons Zefirellis deste mundo.
Uma vez perguntaram ao Picasso o que faria se fosse metido na cadeia. E ele respondeu: desenharia com a merda que fizesse. Como diz o ditado, quem não tem cão caça com gato. O importante é o acto de caçar. Quando se fez isso toda a vida, capturar a presa ou não é irrelevante, o alvo é interior e não exterior. Daí que os arqueiros zen, nos seus exercícios, visassem alvos que se situavam a três metros de distância: o fito não era demonstrar a pontaria, mas tornar una a respiração e o acto.
Ora, o que faria Picasso ao pintar com a própria merda, é o que faz Herberto ao escrever com os recursos que lhe são próprios à lucidez consentânea ao seu actual estado. A merda só dá castanho, mas  a expressão no traço não faltaria ao Picasso e isso é que seria preciso captar e não acusá-lo de uniformidade cromática... ou do aroma. 
A vida muda-nos, e aos nossos austeros princípios com ela, e ainda bem que é assim, pois, ao contrário do que julgam os jovens a vida não é uma luta perpétua entre vampiros e lobisomens, é antes um movimento que não consente os maniqueísmos, mais aparentado à dança, ou a um golfo onde confluem múltiplos braços, numa rede complexa e extensa. A vida não consente a separação entre nós e os “outros”, porque afinal é sempre nós “com” os outros; a vida não se define pela dicotomia: ou eu ou o inimigo, posto que o nosso pior inimigo habita em nós mesmos, nas nossas projecções.
O Diogo, verifico, ainda não teve o discernimento de ver que está refém do asco que quer detectar nos outros, e como o seu comportamento se inscreve numa postura de ressentimento, reactiva. Julgo que ele, que é criativo e tem evidentes qualidades, não merece a armadilha que estende a si próprio.
Interrompi o texto para ler mais uma história de As Mil e Uma Noites e descobri abismado que, ao contrário das minhas filhas, não me lembrava de todo onde ontem tínhamos ficado. Passava-se o enredo que esqueci no Palácio das Lágrimas. A minha súbita, inconcebível, falta de memória irmanou-se aí, nesse esquecimento das lágrimas, com as imprecações do Herberto, contra os que lhe exigem o silêncio e o acusam de bluff (de bluff, Diogo?) no vestíbulo duma morte que, foda-se, só a ele pertence.
Outro grande equívoco de Diogo é invocar como modelo crítico o Luís Pacheco, um dos homens mais mediocramente auto-complacentes que conheci na vida. O Luís Pacheco foi sempre labregamente parcial e muitas vezes injusto e desonesto – canalha , diria – por birra circunstancial. Era tudo o que uma inteligência pode ter de patológico quando destituída de calibragem emocional. E o que fez de bom, de realmente bom, foi pouco, muito pouco, em relação ao que podia ter feito, não fora a sombra da sua própria ruindade o ter mutilado. Porém, a hagiografia tem destas coisas: ficamos muito críticos para os outros e menos lúcidos em relação aos nossos modelos.
A intransigência de Diogo Vaz Pinto é aliás contraditória com a pulsão dialógica que existe na sua poesia – bizarro. Não creio que o poeta Diogo Vaz Pinto merecesse ter assinado este texto.
Há de facto muito a apontar e a criticar no sistema e na instituição literária mas é incerto que seja este o modo de modificar o estado das coisas, e julgo que o pretexto foi absolutamente mal escolhido.  
O Herberto foi sempre um dos nossos “homens dignos”. Isso merece respeito. Ou o decoro, se o seu passo for em falso, e nunca que o tomemos como objecto de repreensão e desdém. Nenhuma vaca é sagrada, mas a demanda do Graal não autoriza a soberba, que Lancelot faça cruzada contra o rei Artur, acusando, imagine-se, o mar de entrar no Amazonas.
O irónico é que, inadvertidamente, Diogo serviu o último intento do velho cisne: sacudir, aos 83 anos, o manto da unanimidade.
O Herberto deve estar contentíssimo. E eu com ele.