quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

HOMENAGEM V: JOSÉ ÁNGEL VALENTE

José Ángel Valente (1929-2000)

Um dos poetas seminais da geração de 50 em Espanha. Poeta de grande densidade conceptual e profundamente anti-retórico, a sua expressão foi-se tornando cada mais lapidar e a sua poética aproxima-nos da mística e da gaguez expressiva diante do mistério e do silêncio. Não por acaso foi um dos tradutores de Paul Celan em Espanha e teve por um dos seus grandes amigos o pintor Tàpies. Para além de Punto Cero e Material Memória, dois volumes que reúnem quase a totalidade da sua obra, recomenda-se a leitura de Fragmentos de un libro futuro, livro de poesia, póstumo, de El Fin de la edad de plata, poemas em prosa, e de Varicianes sobre el pájaro y la red, e Elogio del calígrafo, ensaios sobre arte e literatura.   
As traduções são minhas, os quadros de Tàpies.
    
                                                  Poemas de Mandorla (1982)

ILUMINAÇÃO

Como poderia aqui quando com fina pele
de leopardo se inclina a tarde sobre
o teu detido corpo não
te soletrar a transparência?

Espalha-se sobre o ar
mortal que nos rodeia
a tua sombra luminosa.
                                     No íntimo
te dás e não cessas de dar-te e eis-me
ateado de ti acendalha de ti
formada desde o meu centro.

Quem és tu, quem sou,
onde terminam, diz-me, as fronteiras,
e em que extremo
de tua respiração ou matéria
não me inspiro no ar que exalas?

Que as tuas mãos me afaguem para sempre,
que as minhas te afaguem para sempre
e possa o ténue
sopro de um deus fazer voar
o pássaro de argila para sempre.

                                                          


PESCOÇO

A branca anatomia do pescoço.

Galgo-lhe a transparência.
                                         Caule
de soberana luz,
                          o teu colo.

Podia estar isento,
ser só assim na natureza,
caule de uma cabeça não existente.

Pescoço.
              Haste de luz.
                                   Isento.
Para inventar de novo o teu olhar
e a tua irrealidade.

Para sondar de novo o mesmo sonho.


PÁSSAROS

O voo dos pássaros lunares
desperta pouco a pouco o submergido
coração da noite.
                            Seios
de luar.
              Bebemos
a sua inesgotável sombra láctea.
O mamilo é o centro da nocturnidade
e o voo busca o centro.
                                       Pássaro.
Mulher.
              A noite:
a sua isolada luz vertiginosa
que estala em sombras.
                                       Sonha
sob as águas cegas
como latido ou gérmen
um voo imemorial
de pássaros solares.


O primeiro nevão
e o silêncio tenaz da natureza
na bainha da alba.

A custo, decifro um pássaro.

Será acudimento definitivo o dia
mudo, na véspera
de tanta claridade?

Late na minha mão um pássaro,
a longitude inteira do seu voo
no primeiro silêncio da neve.

Quem és tu?
                   Quem desperta contigo
neste despertar?
           

Escrever é como a segregação das resinas; não é acto, mas lenta formação natural. Musgo humidade, argilas, limo, fenómenos do fundo, e não do sonho ou dos sonhos, mas de barros escuros onde as figuras dos sonhos fermentam. Escrever não é fazer, mas sim aposentar-se, estar.


ÚLTIMA REPRESENTAÇÃO
                                                           A parlar d’ira, a ragionar di morte.

                                                            Rime:CCCXXXII
Os deuses
desta Primavera
não me foram propícios
e cautelosamente os execro, mãe
incógnita, blasfémia, fonte do rogo.

Dispuseram os seus praticáveis negros
sobre o tablado.
Começa o espectáculo,
mas só um final se representa.

Ao centro da cena, um homem
ou a figura de um homem
de macilentos zigomas ostenta
uma pesada cornadura.
Por cada um dos cornos
faz beber sujos detritos líquidos
à sua exânime estirpe.

Excremental o homem.
                                     Nada
com ele nem nele podia
crescer, multiplicar-se.
Nem sequer o pranto.
                                 Povoai a terra.
                                                        Oh deuses,
desatino sem fim, sem fundo, o deste sonho.

Fita as lamparinas, deslumbrada,
a mulher nua que alumia
com uns límpidos e ofuscados olhos o nada.

Começa a cair o pano.
                                   A sombra
ameaça cair outra vez sobre a sombra.

Só eu aplaudo, na sala apinhada
de espectadores mortos.


MORTE E RESSURREIÇÃO

Não estavas tu, estavam os teus despojos.

Logo e depois de tanto
morrer não estava o corpo
da morte.
                Morrer
não tem corpo.
                          Estava
translúcido o lugar
que manteve o teu corpo.

A pedra fora removida.

Não estavas tu, o teu corpo,
sobrevivia enfim a transparência.


Jogar o jogo. Às primeiras, o jogo é torpe, sujeito a regras imitadas. Até que chega o dia em que se começa a jogar o jogo dentro do jogo, simplesmente, nas movediças fronteiras da sombra e da luz. Jacinto, ferido mortalmente pelo disco de Apolo, renasce na intensificada fragrância da flor. Jacinto e Apolo jogam: o lance é o da morte e da ressurreição.


IL TUFFATORE

Não nos demoramos à superfície mais do que o lapso de uma inspiração profunda que nos permita regressar ao fundo. Nostalgia das brânquias.


NUTRÍCIA SOMBRA

E uma vez mais o engodo
nocturno da aranha, ou a implacável
inversão do amor.
                              Os fios,
como duros  arames, que aferram
de nervura em nervura o hálito.

Estendido em cruz, imóvel alimento
da devoração.

Desde a primeira bainha
onde se respira – fugi.
E de novo fugi para ver o meu corpo
na má tenaz.
                     Baixava,
partia do centro de si,
arrebatado por intrínsecos fluidos escuros,
o animal – tão ávido
que devorava o meu corpo abandonado,
donde fui ao que não fui,
a sua sombra ou o seu vazio.


                                          de Fulgor (1984)
II

Esquecer.
                Esquecer tudo.
                                         Abrir
ao dia as janelas.
                             Esvaziar
a habitação onde
húmido, não visível, esteve
o corpo.
              Trespassa-o
o vento.
               E nada acha.
Procuram em todos
os cantos.
                Não poder encontrar-se.


XXIII

O gato é pássaro.

Ressente-se de sua infinita
pacatez
o ar.
        Faz-se presa.
É corpo, presa com a sua presa.
                                                    Voa.
Desaparece na direcção do crepúsculo.


XXXI

A extrema longitude da noite
como uma  indestrutível
faca.

Noção de alba.
                        Abrimos as tuas entranhas.
Tu a salpicá-las como chuva
enquanto eu as bebia,
                                  pássaros vivos.



                   de Ao Deus do Lugar (1989)

Formou
de terra e saliva um buraco, o único
que pôde afinal conter a luz.


                                        (Matéria)

Como cristal, como crustáceo ou larva,
corpo voraz noutro corpo.

Não vives sem o seu sangue.

Foste violando
com as tuas ventosas húmidas
os pontos mais secretos.

Fizeste-te serpente, noite,
viscosidade, resíduo.
De quanto o outro
de si não consentiria,
nunca, morrer bastante.



O melhor é retirarmo-nos pé ante pé
do espectáculo a que nunca acedemos.

Estancar na linha das portas
a ténue presença da sombra.

E para quê embandeirar a História
se a História não existe em nenhum reino?

Cair no ar, dissolvermo-nos como
se a nossa respiração fosse doutrem.


de No Amanece el Cantor (1992)


WHAT KILLED the dinosaurios?, perguntas cravando na minha pupila a tua pupila azul. Ou quem? Tu mesma, um meteoro, uma erupção vulcânica? Morreram um a um apunhalados ou foram vítimas prematuras de uma súbita e calculada exterminação?


                                                                (Anotações para um fim de século)
DE TEU NAUFRAGADO coração chega-me, como antes a tua voz, o bafo obscuro da morte. Habita-me com ela. Nem sequer a morte pode de mim jamais arrebatar-te.



PAISAGEM SUBMERGIDA. Entrei em ti. Em ti entrei-me lentamente. Entrei com pé descalço e não te achei. Tu, sem embargo, estavas. Não me viste. Não tínhamos já sinal com que dizer-nos a nossa mútua presença. Cruzar-se assim sós, sem ver-se. Pássaros amarelos. Transparência absoluta da proximidade.



AO CAIR A TARDE, a não visível mão de um deus apaga-te como asa de pássaro caído até ao mais denso da sombra que forra a sombra. Dissolvido estás, enfim, na tua própria mirada.



LENTAS SEGUEM as luas às luas, como cede à luz a luz, os dias aos dias, a pálpebra tenaz ao mesmo sonho. Viver é fácil. Árduo sobreviver ao vivido.

6 comentários:

  1. Desculpa, António, mas não consigo reprimir o quanto gostei!
    Abraço,
    Ricardo

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  2. Excelentes as tuas traduções do José Ángel Valente, António. Como excelentes são também os poemas do Ozo, uma vertente erótica que não devias abandonar.

    Já estou aqui a preparar o bote para, a exemplo do Tuca, assaltar tua casa. Um crime necessário, providencial nesses dias em que o sol carioca me convence de que é mais sábio virar churrasco na praia do que ser lentamente assada, a escrever no computador, na estufa em que moro. Espero que compreendas.

    Um abraço

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  3. A propósito, ele já "amarrou" lá no DS o primeiro cabrito (na gíria carioca, produto roubado e posto à venda).

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  4. Bem vinda Anga
    olha que por aqui o calor também estrela ovos nos ombros.
    o Ozo agradece, que a lotaria do tempo lhe seja propícia.
    Anga lê-se com j?

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  5. Com g mesmo, de gata. Ou de gueparda, em certos períodos. Com j, só excepcionalmente, nos feriados patrióticos e cristãos, quando em mim baixa um anjo... o das trevas, o tinhoso, o cramunhão!

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  6. Com o cramunhão não quero nada! Fiquemo-nos pelo G, de Anga dos Reis

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