quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

HOMENAGEM III, PACHECO



Foi em Berlim, fugindo da neve, que me espancava numa praça sem fundo, que me atirei para dentro da primeira livraria que me apareceu. Ao acaso.
Era uma livraria hispano-alemã, e aí passei uma hora deliciado com as coisas que nem em Madrid encontrava. E vários poetas meti no bornal, tudo em primeiras edições e ao preço da chuva: Rosário Castellanos, os delirantes ensaios de Lezama Lima, Homero Aridjis, o ensaio de Cirlot sobre o olho, e José Emílio Pacheco, amigo de Paz e seu antípoda.
Em Maputo espanca o sol e a solidão entre os coqueiros. E acordamos demasiado cedo. Aí, como refrigeração traduzo.
Com excepção do retrato, as fotos são de Flor Garduño.


UMA DEFESA DO ANONIMATO
                       (carta a George B. Moore para negar-lhe uma entrevista)

    Não sei porque escrevemos, querido George
e muitas vezes me pergunto por que mais tarde
    publicamos o escrito.
Quer dizer, lançamos
    uma garrafa ao mar, que está repleto
de lixo e de garrafas com mensagens.
     Nunca saberemos
a quem nem onde as arrojarão as marés.
     O mais provável
é que sucumba na tempestade e no abismo,
     na areia do fundo que é a morte.
     E no entanto
não é inteiramente inútil este trejeito de náufrago.
     Porque num domingo
liga-me você de Estes Park, Colorado.
     e diz-me que leu quanto está na garrafa
(suplantados os mares: as nossas duas línguas).
     E quer fazer-me uma entrevista.
Como explicar-lhe que jamais dei
     uma entrevista,
que a minha ambição é ser lido e não “célebre”,
que importa o texto e não o autor do texto,
que descreio do circo literário.

    Logo recebo um imenso telegrama
(o horror que há-de ter gastado ao enviá-lo).
    Não posso responder-lhe nem deixá-lo em silêncio.
E ocorrem-me estes versos. Não é um poema.
     Não aspira ao privilégio da poesia
(não é voluntária).
      Vou antes usar, como o faziam os antigos,
o verso como instrumento de tudo aquilo   
      (relato, carta, drama, história, manual agrícola)
que hoje dizemos em prosa.

     Para começar a não responder-lhe direi:
Não tenho nada que acrescentar ao que está nos meus poemas
     não me interessa comentá-los, não me preocupa
(se algum tenho) o meu “lugar na história”
     (tarde ou cedo a todos ceifa o naufrágio).
Escrevo e isso é tudo. Escrevo: dou a metade do poema.
     Poesia não é sinais negros na página em branco.
Chamo poesia a esse lugar do encontro
      com a experiência alheia. O leitor, a leitora
farão ou não, o poema que tão somente esbocei.

      Não lemos os outros: lemos-nos neles.
Parece-me um milagre
      que alguém que desconheço possa ver-se no meu espelho.
Se há um mérito nisto – disse-o Pessoa –
      cabe aos versos, não ao autor dos versos.
Se por casualidade é um grande poeta
      deixará quatro ou cinco poemas válidos
rodeados de fracassos e borrões.
      As suas opiniões pessoais
são de verdade muito pouco interessantes.

    Estranho mundo o nosso: cada dia
lhe interessam mais os poetas;
      a poesia cada vez menos.
O poeta deixou de ser a voz de sua tribo,
      aquele que fala pelos que não falam.
Evaporou-se em nada ou é mais outro entertainer.
      As suas bebedeiras, as suas fornicações, a sua história
      clínica,
as suas alianças ou picardias com os demais palhaços do circo,
      com o trapezista e o domador de elefantes,
têm assegurado o amplo público
      a quem já não faz falta ler poemas.

      Continuo pensando
que é outra coisa a poesia:
       uma forma de amor que só existe em silêncio,
num pacto secreto entre duas pessoas,
        de dois desconhecidos quase sempre.
Acaso leu você que Juan Ramón Jiménez
        pensou faz meio século editar uma revista.
Ia-se chamar Anonimato.
         Publicaria textos, não assinaturas,
e se faria com poemas, não com poetas.
        Eu gostaria como o mestre espanhol
que a poesia fosse anónima já que é colectiva
        (a isso tendem os meus poemas e versões).
Possivelmente você me dará razão.
        Você que me leu e não me conhece.
Não nos veremos nunca mas o nosso laço é firme.
         Se lhe agradaram os meus versos
que importa o serem meus/ de outros / de ninguém.
         Na realidade, os poemas que leu são seus:
Você, o seu autor, que os engendra ao lê-los.


«MORALIDADES LEGENDÁRIAS»

Odeiam a César e ao poder romano
e rejeitam mordiscar a mais pequena passa
melindrados pelos escravos que estoiram
nas minas de sal ou nas galeras

Falam das crueldades do exército
nas Gálias e Ilíria
                            Atolados
em javali, perdizes e costeletas,
dão um sorvo
                      no vinho siciliano
e empinam os lábios
                                articulando
as mais excelsas palavras:
a hhuummannidaade o hooommmeem
                                     todas essas
rotundas e grandes e canoras sílabas
que rasuram a humildade de outras sem eco
- como digamos um exemplo
                                               “gente”

Terminada a função
                            Entram os servos
e levam o resto do festim
E então os patrícios agasalham-se
nos seus mantos de Chipre
Com a centelha de gozo nos seus olhos piscos
Depois como o gladiador que enterra o tridente
enumeram felizes os abortos
de Clodia a toscana
a impotência de Lívio os avanços
do câncer em Vitelio
afirmam que é cornudo o velho Cláudio
e reprovam a Flávio não ser mais
que um escravo liberto um arrivista

À saída despertam às patadas
esse cocheiro insolente
e dirigem-se com furor ao Palatino
a oferecer servilmente o macambúzio traseiro
      ao magnânimo César.



A ALBA EM MONTEVIDEO

Desfaz-se a noite lentamente na lua
que galga
                  plena de eternidade


RIO DAS BORBOLETAS

Entre os nadadores distinguimos
a Heraclito o Obscuro
que fez um aceno de despedida


DEFINIÇÃO

A luz: a pele do mundo


OBSERVAÇÕES


1.     BALANÇO

Naquele ano escrevi dez poemas.
Dez diferentes formas de fracasso.

2.     MANIFESTO

Todos somos poetas
de transição
A poesia jamais
se queda imóvel

3.     AUGÚRIOS

Dentro de pouco tempo soarão
estes poemas mais ridículos que agora
Como não há fixador no mercado
Hão-de ir-se desvanecendo as minhas sílabas
- snapshots instantâneos mal enquadrados

4.     OFÍCIO DE POETA

Ara no mar
Escreve sobre a água

5.     UMA CARTITA ROSA A AMADO NERVO

O ridículo é a eloquência que se gasta
      Não te preocupes
se sorrimos com os teus versos dolentes
e nos sentimos hoje por hoje superiores
     Tarde ou cedo
iremos fazer-te companhia

6.     O AUTOR REVELA O SEU ANONIMATO

Os meus poemas não têm leitor
Os meus livros congestionam as caves
Nada se pode contra o Kamasutra
Nem contra O Código da Vinci
Ou o Reader’s Digest

7.     CONTRA OS RECITAIS

Se leio os meus poemas em público
despojo a poesia do seu único sentido:
dotar as minhas palavras da tua voz
por um instante que seja

8.     ARTE POÉTICA

Lisonjeei o meu auditório      renovei
o seu repertório de lugares comuns
de ideias adequadas aos tempos que correm
Pude fazê-lo rir uma ou duas vezes
e terminei quando se instalava o tédio
Em recompensa aplaudiram-me
Aonde
vou eu esconder-me e devorar a minha vergonha?

9.     ARTE POÉTICA

Não a tua mão:
a tinta escreve às cegas
estas poucas palavras.

10.            GATAFUNHOS

Escrever
é viver
de certo modo
e no entanto tudo
na sua aflição infinita
nos conduz a intuir
que a vida jamais estará escrita



AS TÉRMITAS

Às térmitas, diz o seu senhor:
      Derrubai essa casa.
E esfalfam-se não sei quantas gerações
a perfurar, a verrumar sem sossego.

Formigas brancas como o Mal inocente,
escravas cegas e de sombra incógnita,
dá-lhe que dá-lhe em nome do dever,
muito por baixo da alfombra
sem exigir aplauso nem recompensa
e cada qual conforme o seu minúsculo troço.

Milhões de térmites que se afanarão
até que chegue o dia em que de repente
caia o edifício, feito pó.

Então as térmitas perecerão
sepultadas na obra de sua vida.


SOLITÁRIA

No jardim-de-infância nenhuma história
me impressionou como o relato de Pedro.
Durante anos
levou no seu ventre Pedro uma ténia,
uma serpente branca, uma solitária,
albina e cega - a qual também era Pedro.

Assim levamos todos muito cá dentro a morte
sem lhe conhecermos a forma até que um dia
ela sai do seu esconderijo e diz: vamo-nos?


EQUAÇÃO DE PRIMEIRO GRAU COM UMA INCÓGNITA

No último rio da cidade, por erro
ou incongruência fantasmagórica, vi
de repente um peixe quase morto. Agonizava
envenenado pela água imunda, letal
como o nosso ar. Que frenesim
      o de seus lábios redondos,
      o zero latejante de sua boca.
      Talvez o nada
      ou a palavra inexpressável,
      a última voz
      da natureza no vale.
Para ele não havia salvação
senão escolher entre duas formas de asfixia.
E não me deixa em paz a dupla agonia,
o suplício da água e a do seu habitante.
       O afligido olhar que me dirigia,
       a sua vontade de ser escutado,
       a sua irrevogável sentença.
Nunca saberei o que tentava transmitir-me
o peixe sem voz que só falava o idioma
omnipotente de nossa mãe a morte. 


STRADA DELL’ ABBONDANZA

À força de explorar os escravos
e do saque dos dinheiros públicos,
houve um pico nos negócios. Assim se tornaram
os ricos mais ricos, enquanto os pobres
redobraram a sua fome e miséria. A cidade
desbordou os seus antigos limites, perdeu os seus rasgos
originais e foi reconstruída
segundo os lineamentos do império. Também a fala
se corrompeu com os seus habitantes, reflexo
ou consequência, não se sabe. E o luxo
penetrou como a hera em muitas casas.
Se o tédio mordia, embriagavam-se.
Todos com todos fornicaram. Como bizarro
pressentimento de sua fragilidade
legaram-nos imagens
dos seus actos sexuais. Entre roubos
e assassinatos não importa onde, o terror
alastrou o seu domínio. Medo na alcova
e pânico nas ruas. Fúrias e castigos.
Sobre tudo o ódio,
cavalga. Porque o bem caminha
mas o mal corre (e não se sacia nunca).
Tudo isto sucedeu em Pompeia, à véspera
do rebentamento do Vesúvio.


O FANTASMA

Entre ariscas sedas acariciadoras,
pleno de mistério - tudo eriçada suavidade
  deslizante –
o insondável, o desdenhoso fantasma
- tigre sem jaula por que prisão
   detém
tal soberania, esta soberana soberba? -,  
o gato adoptivo,
o gato ex-lumpen sem pedigree (com pré-história),
que deixa o seu harém e com um donaire supremo
se deita na cama onde jazes nua.
  


10 comentários:

  1. António, posso divulgar algumas das tuas traduções?
    Saúde e um abraço,
    Ricardo

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  2. Esqueci-me do adjectivo: das tuas maravilhosas traduções!

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  3. podes, podes divulgar, divulgando a fonte, naturalmente

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  4. Vou aproveitar a autorização!
    Continua a refrigerar-te! Não só pelas belíssimas traduções (versões?) como por dares a conhecer poetas mais distantes dos nossos universos mais próximos. Forte abraço
    Manuel Augusto Araújo

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  5. António,

    Cheguei até aqui através de outro blog que postou "UMA DEFESA DO ANONIMATO". Logo me encantei com tuas outras traduções do José Emílio Pacheco. Como já autorizastes ao Odracir a divulgá-las, nem vou pedi-lo. Mas peço mais: tua autorização para divulgar também teus poemas e tuas traduções do Nicanor Parra.

    Espero que teu livro tenha chegado. Ou... Não se emendam, os Correios?

    Um abraço

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  6. meu caro tuca, autorizadíssimo.
    vamos ver se é hoje que os correios se emendam. na verdade já vamos na segunda encomenda posta de portugal...
    já botei olho no vosso blogue, é divertidissimo.
    vocês são de que parte do brasiu?
    agora mesmo postei uma tradução do benedetti que é engraçada, abraço cabrita

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  7. Já passei pelo "teu" Benedetti. Um luxo. Já está no meu balaio!

    Passei também por todas as postagens anteriores a esta. Tudo muito especial. A justificar (com urgência que depende apenas da boa vontade de uma dor ciática que está me atazanando) uma postagem geral sobre teu blog. Se não te incomodar, é claro, uma possível invasão de leitores brasileiros.

    Somos três de Minas Gerais e uma do Ceará, mas todos moramos no Rio.

    Abraço

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  8. meu caro tuca
    do rio só conheço um poeta putanheiro neo-classico, um doido sem juizo ainda que academizado chamado alexei bueno. tenho é amizades em s.paulo e na amazonia - mas talvez vá ai este ano lançar um romance. boa ocasião para um bate-papo feroz.
    xinga-me essa ciática. abraço cabrita

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  9. Conheces o Alexei? Diligente ensaista, crítico e poeta (gosto de vários de seus poemas sobre o Rio e sobre a boemia carioca; já postei alguns no blog), embora seja de fato um conservador, um neo-classicista empedernido e furioso. Tem feito também bons trabalhos como curador das exposições da ABL. E é um ótimo parceiro de copo, desde que não se fale bem do Lula (ou da Dilma) e... só você beba álcool!

    Abraço

    P.S.: Gostei muito das tuas novas postagens, mas não pude deixar comentários. A ensebada da ciática só me libera para no máximo 20 minutos ao computador, a intervalos de hora, hora e meia. Dê um grande abraço no Ozo.

    P.S.: Será um prazer tê-lo por aqui. Se for mesmo vianilizado, traga exemplares de teus outros livros (se é que os Correios te permitiram tê-los). Podemos organizar, quem sabe, um lançamento coletivo. Gente interessada é o que não faltaria, garanto. Independente disso, seria um imenso prazer te apresentar a umas cachaças muito cordiais.

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  10. tuca
    de facto conheci o alexei em lisboa, publiquei-o e bebemos umas bravas garrafitas enquanto ele arengava, inflamado. gosto muito dele.
    infelizmente quase não tenho livros meus comigo, nem os editores deixam nem a gangrena destes correios, mas tenho vários pdfs das provas dos livros e posso-tos enviar se te apetecer. abraço

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