terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

AMOR CÃO

Estou a dois capítulos de terminar o meu livro sobre as mulheres vítimas de violência doméstica em Moçambique, cem páginas de relato emocionado nascidas duma longa incursão por todo o país, pelos motivos que se explicam em baixo. Como doping para o que me falta, aqui baixo o prefácio:
I
É medonho continuar-se a omitir o horror da experiência e o destino de milhões de mulheres, a uma hora de caminho de muitos aeroportos internacionais. Termos frequentado como leitores a tragédia grega não nos habilita, e Medeia e Antígona suprem com a sua força a ignomínia sofrida pelas gregas. Trata-se antes, neste caso, de dramas anónimos, mais invisíveis que os sacos de carvão sem dono à vista que bordejam as estradam nacionais africanas.
Ouvir os relatos de mulheres que fugiram à clausura da intolerância de certos países islâmicos arrepia-nos, mas cremos que a internet e as antenas parabólicas acelerarão indubitavelmente as mudanças no seio dessas sociedades alfabetizadas; esses poderes já cedem à opinião pública mundial, como se verificou no caso da iraniana Sakine Mohamadi Ashtiani e se vê agora no tremendo susto em que coa o Egipto. Claro que nos lares ocidentais abundam ainda, como no conto de Virginia Woolf, os maridos que à hora da refeição comentam as nódoas na parede, localizadas exactamente nas costas das esposas, pois estas, de tão irrelevantes para eles, já se tornaram transparentes; também aí a violência campeia, rebarbativa, cruel. Não obstante o aviltamento do vivido, são territórios onde já há instrumentos para que a violência se torne visível.
Porém não há educação que nos prepare para a abominação silenciosa, mesquinha, que com a cumplicidade das tradições, se perpetra em África, não há palavras para descrever a plaina com que se apaga valores e direitos e se destrói o futuro de gerações inteiras de mulheres e crianças, sob o mais excruciante silêncio. E sendo estas mulheres de um país paupérrimo e periférico, como Moçambique, uma borbulha no caldeirão das nações, não capturam o foco dos media.

Saartjie "Sarah" Baartman (1789-1815) foi a mais famosa de, pelo menos, duas mulheres hotentotes usadas como atracções secundárias de circo na Europa. Motivo: a proeminência das nádegas
Marraquene, a 30 km de Maputo. Orlanda e Guilhermina, nomes inventados, têm treze e catorze anos respectivamente. Há um ano e ano que toleram que o pai, quinzenalmente, examine in loco se as meninas se mantém virgens. Ao fim de ano e meio de cuidadosa apalpação o progenitor, após um almoço regado a Tentação, um uísque sintético vendido em garrafinhas de plástico, resolve averiguar se as suas crias estão no ponto e nada lhes falta para serem mulheres por direito próprias. Gritos, choros e gemidos. Uma hora depois, as filhas dobram-se a um canto, cada uma tapando a cara de raiva e vergonha, e o pai regozija com «o seu trabalho bem feito»: são duas mulheres formadas, sem nada avariado. O que merece comemoração. Abre outra garrafinha do uísque martelado. Três longos goles depois, anuncia: «As meninas, a partir de amanhã não vão à escola. Acabou a papa doce. A partir de amanhã trabalham…». As raparigas protestam, suplicam, querem continuar a estudar. O pai está inclemente: «Acabou, chegou a hora do job… que tá na hora de reformar-me». Mas que job, pai, perguntam, temerosas. O pai não hesita: «Há muito trabalho na estrada, muito camionista a passar…». Elas rejeitam a proposta do pai, insistem em estudar, em ter futuro. Têm medo das doenças, diz a mais velha. O progenitor não se demove, «doenças houve sempre… e que têm de mal? Não existem os curandeiros, as farmácias? E os filhos têm de obedecer ao mais velho, a tradição exige. Mas se não querem, faz-se assim, a partir de amanhã, nesta casa, eu como primeiro e só depois é que vocês se sentam à mesa…», vaticina.
No dia seguinte, às 13h20, o pai molha o último naco de pão no guisado de carne e rumina pacientemente a côdea. A gosto. Elas esperam de lado, na expectativa. O pai levantava-se da mesa e a mais nova crispa-se enquanto a mais velha, numa sinalefa, lhe pede que se acalme. O pai apalpa a barriga, com um pulso limpa a beiça, depois boceja. Ao ralenti. Em seguida, dirige-se à panela, coloca-a no chão, desaperta o cinto, baixa as calças e as cuecas, mete-se de cócoras sobre o recipiente e defeca sobre o guisado. Após o que volta a colocar a panela no fogão e dirige-se-lhes, impassível: «Podem comer!».
Um mês depois desta primeira prova de autoridade, repetida a todas as refeições daquele mês que constituiu para elas o grande reverso do amor, as raparigas, de quem já se dizia na vila andarem “muito diferentes, esqueléticas e a chorar pelo canto”, resolvem, finalmente ir à polícia apresentar queixa contra o pai.
o estereótipo interiorizou-se: agora chamam-lhe ritmo
O Adriano tiritava quando lhe abrimos a porta e nos pediu um pão. Estava descalço, como quase sempre. Tem agora catorze anos e uma expressão menos afável do que quando o conhecemos, vai para seis anos. As duras solas do pé e os dedos amassados numa massa bruta não o protegem do frio que vem da terra, do cimento esfarelado dos passeios. Este Inverno em Maputo tem sido mais rigoroso e duro para os meninos de rua, os aprendizes de «moluene».
Ainda recordamos a conversa que entabulámos, no nosso início de relação, caminhando ao longo da Rua de França. Íamos para a Universidade e ele saltitava ao nosso lado, no encalço de uma moeda para o «chapa»:
- Como te chamas?
- Adriano.
- Bravo, tens nome de imperador romano…
- Qué um imperador?
- Um rei dos reis… Em que classe andas?
- Na primeira…
- Na primeira? Mas que idade tens tu?
- Oito.
- Estás atrasado…
- Não tenho mola para chinelos, na escola não deixam ir descalço.
- Hum, e se te derem uns chinelos, as sandálias do imperador?
- Com sandália vou…
- Como é que sei?
- Me vê da varanda… A escola é lá…
- Tens razão, é ao lado de minha casa… Mas tu prometes que vais às aulas? Olha que não se pode ter só o nome, tens de ter a ambição de um imperador… Eu dou-te as sandálias, e posso dar-te uns cadernos e até umas sandes, mas tens de ir à escola…
- Nice…
- Fazemos o contrato?
- Ya…
Demos-lhe as sandálias mas vendeu-as rapidamente, mais aos cadernos. Com o dinheiro ia de chapa até à Costa do Sol, para se pôr à crava na praia.
Outro dos seus interesses era a nossa filha, da mesma idade. Procurávamos meter-lhe na cabeça que nenhuma menina ajuizada, nos tempos de hoje, aceitaria um namorado analfabeto. Afastava a advertência num sorriso onde a malícia e a timidez ainda disputavam territórios. À falta de outra bagagem para estabelecer com ela uma base de diálogos, de interesses comuns, pedia-lhe a bicicleta e o skate. Ao skate partiu-o, e com uma força inesperada para o seu corpo franzino entortou o guiador da bicicleta. A miúda não lhe emprestou mais nada, e passou a ignorá-lo. Ela. Ele rebola o olhar quando a vê passar e gagueja à porta quando é ela que abre, antes de pedir pão.
Tornou-se o nosso pedinte de estimação – uma sande, às vezes duas, uma banana, um pedaço de bolo. E fomos «desconseguindo» a fala à medida que ele deitava corpo e a esperança de o ver abandonar a rua se tornou nula. O mais das vezes é nítido que andou ao lixo, que dorme sem tecto e não se lava.
O ano passado «matámo-lo», no nosso diário, fizemo-lo desaparecer no alçapão de um parágrafo. Por cansaço. Por não o podermos adoptar nem querermos assistir mais à sua degradação. Ou talvez para não ousar fazer a pergunta mais óbvia: em que momento deixará o Adriano de pedir para passar a roubar, em que momento terá ele o primeiro impulso de irreflectida violência, em resposta a anos de anos de maceração e silêncio? Porque não é cego, o Adriano, e, embora não sendo muito escorreito, sabe o que sente, o que tem padecido, a desproporção com que a nudez da sua extrema pobreza assiste à mecânica voracidade dos indiferentes. Está um rapagão, e ainda sorri quando nos vê, mas intimamente começamos a evitá-lo, a recear que dissimule, que um dia se conluia a outros e nos retribua a confiança com a vingança que se serve fria. Querer que o Adriano cristalize na engordurada bondade de Rousseau, depois de tanto desamparo, de tão vertiginosa solidão na fome e no frio, seria um sinal de estultice ou de um cinismo cego ao seu desplante. Não, o esfaimado Adriano, que não tem o olhar marasmado, tem a obrigação de revoltar-se, merece o seu gesto de desespero. Gostaríamos é que fosse longe de nós, nisto incoincidimos. Nem gostaríamos de o ver ser preso ou magoado. Não se trata de uma questão de conforto, mas de impotência, a impotência do remediado face ao deslindável assento da miséria.
Na edição de ontem, Kathleen Gomes, no matutino «Público», de Lisboa, assina uma crónica sobre o julgamento militar de Omar Khadr, aprisionado com 15 anos em Guantanamo, uma criança ainda, oito anos depois da sua detenção. Para o tribunal militar, Omar foi uma «criança-soldado» com vários crimes às costas, entre eles o de ter lançado uma granada que vitimou um sargento americano. A ser verdade, e estamos num terreno onde a verdade está em leilão, ninguém pergunta o que levou um jovem de 15 anos ao impulso de atirar a granada sem uma hesitação, repetindo o selvagem espalhafato que vê nos filmes americanos, nem quem fabricou a espoleta. Ou sequer o que lhe aconteceria se o sargento americano o tivesse visto primeiro. Há uma candura que se espera dos jovens, quebrada só às vezes, e espasmodicamente, quando o teenager pega na caçadeira do pai e vai para o liceu liquidar colegas e professores - não se interroga o sistema que os deformou.
Quem vive em África mantém ainda presente, no passado recente, os exércitos de crianças-soldado, é um rasto na memória dos povos que não sai das narinas, como o cheiro dos lança-chamas. Ainda o ano passado se noticiava que, na Guiné-Conacri, Dadis Camara preparava na sombra um exército de crianças-soldado. Não se assistiu a um gesto da comunidade internacional, habituada a que tais desbordamentos africanos se torne em espectáculo de cinema, como em «Johnny Mad Dog».
Cada «moluene» é em potência uma criança-soldado. E têm hipótese de não ser, num continente em que a esperança de vida não ultrapassa os 40 anos; se as instituições os abandonam, e quando, só em Moçambique, neste momento, existe um milhão e meio de crianças órfãs de SIDA?
De Março a Maio de 2010, juntamente com a actriz Ana Magaia, percorri oito províncias, no fito de fazer uma investigação sobre a violência doméstica no país e uma répèrage, tendo em vista oito vídeo-reportagens sobre o tema, que viriam a ser realizadas por Chico Carneiro e produzidas pela ONG N’weti/Comunicação Para a Saúde. Entrevistámos na viagem cerca de 270 vítimas de violência doméstica (a grande maioria mulheres), de Maputo, até Nampula; vítimas de todas as classes sociais - um painel que não é despiciendo e já oferece uma leitura panorâmica.
Dado o teor das entrevistas, foi um trabalho psicologicamente extenuante e que demasiadas vezes nos “descascou” emocionalmente. Na verdadeira cascata de violência de que fomos auditores, das coisas que mais nos impressionou conta-se o abandono das crianças, vítimas colaterais da violência e da irresponsabilidade dos pais.
Moçambique – que tem índices de pobreza crescentes e 65% de analfabetos - é o segundo país do mundo com maior número de casamentos prematuros no mundo e entrevistámos dezenas de mulheres com vinte e quatro, vinte e cinco anos, trocadas por outras, e deixadas pelo cônjuge na miséria, juntamente com os 3, 4, 5 filhos de ambos. Estas crianças - e muitas delas não foram sequer registadas - ficam à mercê do deus dará, sem a menor possibilidade de continuar a estudar, de se alimentarem condignamente, e de um crescimento sustentado. Só na Beira, o livro de ocorrências do Gabinete de Apoio às Mulheres e Crianças Vítimas de Violência Doméstica, registava 107 casos de crianças «perdidas e achadas» para o período de Janeiro a Maio deste ano. Imagine-se este número multiplicado pelas cidades e distritos do país – milhares de crianças desprovidas, famintas, que aprendem cedo uma cruel gramática da sobrevivência e se movem na sombra como a lava de um vulcão iminente.
Não nos parece que este exército na sombra sucumba inteiro à gadanha da malária e admitimos, com alguma apreensão, que aquilo que Moçambique neste momento produz com maior vigor industrial seja batalhões de «moluenes» que um dia, como os gafanhotos das pragas do Nilo, marcharão para as cidades. É uma situação de que toda a gente parece alheada: ninguém ousa imaginar o suficiente.
Entretanto, perguntamos, com o filósofo francês Marcel Conche: «o que dizer do fiel que, enquanto as criancinhas ardem como tochas, canta a glória de Deus?». Que dizer do mistério do mal que apraz calar-se? Cremos que, definitivamente, «o sofrimento das crianças é um mal absoluto, mácula indelével, na obra de Deus…».
A violência desta abafada explosão demográfica não nos parece menos grave da que é sofrida e nos foi narrada pelas mulheres, numa urdida barbárie que a tardia Lei Contra a Violência Doméstica atenuará mas não mitiga. São gerações de mulheres e crianças amputadas por uma malsã mentalidade androcêntrica e por uma falência de valores que torna o futuro um desafio de contornos difusos. Por isso impôs-se-me testemunhar e emprestar o grão àquelas vozes arrancadas à noite de suas almas.
Quando a série de vídeo-reportagens passou recentemente nas televisões moçambicanas algumas das mulheres que nela aceitaram dar a cara manifestaram um medo terrível face ao seu futuro, e uma delas (a Maria João, de Inhanssuge), um mês depois de ter contado o seu drama para a  câmara, antes mesmo de aparecer na televisão, foi morta à catanada, vítima do crime que se anunciava. Por isso, em alguns casos, como é natural, para protecção das vítimas, mudámos o nome, o lugar de origem e alguns traços que tornassem identificáveis as narradoras.


1 comentário:

  1. Isto das várias formas de violência a que as mulheres estão sujeitas é uma realidade terrível.
    Acho que actuar sobre as consequências pode ter os seus efeitos. Mas, o ideal seria actuar sobre os mecanismos de reprodução social que fomentam estas injustiças.


    Tavares B

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