segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

ERUPÇÃO NO PICO

Robert Doisneau: le pigeon de la gloire
O Carlos Alberto Machado acabou de escrever o romance. Estou todo contente, embrulhado numa capulana, a chazinho e torradas, ao lado do ecrã do computas, à espera que ele mo mande. Só conheço o primeiro capítulo, de arromba.
Mas enquanto o ingrato não mo envia, eu posto o que sobre ele escrevi em Agosto e publiquei no Savana, quando ele esteve em Maputo: 

«Ser campeão de pingue-pongue
aos oitenta, eis um desígnio,
ainda que seja sabido:
os hamsters são reféns do destino.»,
rabisquei à margem de um poema deste livro, sob influência.
E sob influência apetece ficar, lido Registo Civil, o livro que reúne toda a sua obra poética, editado este ano pela Assírio & Alvim.

Diga-se de antemão que uma das portas de entrada nesta poesia é o declarado anonimato a que nos remete o nome do volume. Um registo civil é o lugar de todos os nomes, receptáculo de milhentas promessas, ou é, por apostasia, o mais fidedigno dos não-lugares. O que é um heterónimo, por exemplo, se não um não-lugar? O facto de Carlos Alberto Machado ser um construtor de personagens e se entregar à «arte de enxertar rios» que é a dramaturgia, é essencial para entender a estratégia desta poesia e a sua elocução.
O volume reúne os seguintes títulos: Mundo de Aventuras (2000), Ventilador (2000), Mito, seguido de Palavras Gravadas na Calçada (2001) A Realidade Inclinada (2003), Talismã (2004), Na Casa de Passar as Tardes (2003-2004),  Uma Pedra sobre o Assunto (2003-2006), O Amor. Estudos Para uma Queda (2004), Tríptico em Negro-Azul (2005), Por isso Voltarei (2004-2006). Destes, os últimos cinco estavam inéditos em livro.
Logo desde o primeiro livro, O Mundo de Aventuras, é nítido que o poeta escreve por ciclos e persegue, mais que o poema avulso, uma partitura onde ecoe(m) uma(s) «voz(es)», num labor “orquestral” que organiza e monta dizeres vários, apesar do seu «efeito de imediatez», de uma suposta simplicidade, espontânea e declarativa.
E as “narrativas” que cada ciclo monta apresentam-se por vezes numa forma descontínua, não linear, para o que contribui uma lógica de colagem no interior de cada poema. Este artifício não apenas diminui o papel do sujeito lírico, impondo às vezes uma voz neutra ou múltiplas vozes, como baralha as fronteiras entre a poesia e a prosa, a linguagem de todos os dias e a literária.
Ou seja, esta poesia está contaminada por marcas de coloquialidade - no fito de reforçar o tal «efeito de imediatez» - e como a sua primeira motivação é dramatúrgica, não se espere dela que «poetize a poesia». CAM não busca o belo, e antes aborda o poema como uma voz à procura do seu lugar, da sua adequação: se um gago é chamado à “boca de cena” convém que a sintaxe do verso seja a do gago. É a sua ética. 
Aparentemente, a sua escrita parte do vivido para nos revelar a crónica biográfica de uma disforia, iluminando os vestígios da perda, o trânsito das emoções fugazes e das pequenas incidências de um homem comum, nascido em plena maré pós-simbólica: «(para o Ruy Belo) Não tenho meu poeta a tua praia da consolação/ nem o chichi das tuas senhoras no meu mar/ não tenho aliás nada de que me lembrar/ nem sequer a morte à bogart sob o meu olhar de marilyn/ nada é tão apaziguador como uma morte/ inventada às vezes a tua e a minha/ nas praias sem consolação a norte a sul/ a poente de um cabo raso/ nascente.»
Veja-se como o curioso “enjabement” (a forma como no poema se parte o verso) isola a palavra final do poema, dando-lhe uma força inusitada, transfiguradora, pois parece a primeira palavra de um novo poema a nascer. Portanto à disforia manifesta no poema – o poeta escreve depois da falência das utopias e dos campos do simbólico, e sente-se uma espécie de detrito tardio – não se sucede a disfunção, o poeta não prescreve ou cede ao cinismo. Talvez porque esta poesia, apesar de à primeira vista estarmos diante de relatos biográficos, não propaga esse tique narcisista tão espalhado de confundir o eu lírico com o sujeito e, pelo contrário, nela se afirme a literatura porque sob “as suas aparentes pessoas” se revela a potência de um impessoal. Mas esta “visão impessoal” – uma distanciação, lhe chamaria Brech - não almeja o menor abandono do sensível, das referências concretas, visa simplesmente esse feliz anonimato que é a abertura ao mundo, ao outro, no afã de «recuperar os nossos sentidos» e de «aprender a ver mais, a ouvir mais, a sentir mais» (Susan Sontag).
Desde a infância de menino pobre - sintetizada em dois versos terríveis, «A orquestra de ratos/ ensaia mais um nocturno», (Livro de Aventuras, pág. 19) – que a realidade se apresenta ao poeta inclinada. “Evidência” com que o poeta traduz a dificuldade da linguagem para traduzir a “complexidade” da realidade: o que é exterior à codificação metafórica. A ventilação da vida, a sua energia transbordante, os encontros e a experiência do amor, mesmo que ameaçado pela incompletude, estão sempre para lá dos conceitos: «Desço em apneia pelo teu sonho e levo na boca o sabor do medo/ de quem não conhece ainda a cadência adequada à descoberta (Por isso voltarei, pag.338)».
Neste sentido, um dos poemas mais esclarecedores desta colectânea começa assim: «A natureza em geral enfada-me com os seus fins de tarde melífluos/ como aqueles no atlântico em frente ao convento de são Francisco/ onde só falta a santinha sob os últimos raios de sol entre as nuvens/ por muito menos que isto já se escreveu muita poética e comadres/ do mesmo santo ofício crítico se exauriram em sangues literários» (Por isso voltarei, pag. 333).
A escolha do adjectivo «melífluo» tão presente na retórica romântica associada à natureza coloca-nos face ao problema: o enfado chega ao poeta por via da impossibilidade de olhar a natureza sem lhe antepormos a memória de um comentário sobre, inviabilizando aí a sua experiência inaugural: «Estou desabituado da alegria talvez por defeito da memória do corpo (Talismã, pag. 217)». É este defeito (por excesso) da memória do corpo que torna a realidade inclinada.
O que me lembra uma história contada por Joseph Campbell, o antropólogo das religiões. Num congresso sobre religiões comparadas, um estudioso americano aproximou-se de um japonês e interpelou-o timidamente, ‘gostaria de falar consigo sobre o xintoísmo, sinto que ainda não compreendi a vossa ideologia…’, ao que o outro responde, depois de um breve silêncio: ‘nós não temos ideologia, nós apenas dançamos!’. É esta dança, o fundo da alegria, que CAM procura captar no fazer de cada poema a experiência de uma coisa no mundo, algo que participe e não tanto um comentário sobre, altaneiro, distante.
O poeta, ciente que nunca cristalizará num formato a transbordante energia da vida, resiste quer a fazer das marcas da sua identidade uma lente única, quer do intelecto uma cortina, o que o leva a ser modesto mas a não desarmar, reinventando todos os dias o seu registo civil: «Todos os dias me ocupo dos meus renascimentos/ obstinadas perdas de memória e amputações várias/ uma forma de anular o tempo como outra qualquer/ todos os dias retiro umas camadas e acrescento outras/ às palmas das mãos principalmente embora não descure/ toda a sorte de articulações e curvas e outras inconsequências/ passo a limpo gestos e olhares mortos antes do nascimento/ mais tarde registo tudo cuidadosamente em folhas já usadas/ acumuladas formam assim uma espécie de livro de instruções/ pessoal e pouco transmissível» (in Uma pedra sobre o assunto, 280).
Portanto este não é o poeta de um estilo mas de muitos estilos, consoante peça o texto, e eis a escrita como uma correcção na palma das linhas da vida e não exactamente como um espelho fiel do vivido - aliás como o sabia Corto Maltese que com a navalha prolongou a linha da vida.
O livro, inédito, que fecha o volume, Por Isso Voltarei, é um dos mais belos poemas de amor que li nos últimos anos, sem que haja nele um momento de (auto-)complacência: é uma escrita tensa, duma dicção que parece querer contrariar a epígrafe - «esse pequeno lugar-comum da tua mão na minha» (Rui Nunes) - pois não se encontra nela um lugar-comum, tarefa árdua e difícil quando se fala de amor.
A ilha do Pico, nos Açores, onde o poeta tem vivido nos últimos anos, é hipostasiada no corpo do amor («o meu sortilégio é apenas este/ ser corpo noutro corpo aqui/ eu ser ilha nele e ele em mim. pág 322) e o seu quotidiano é retratado como o imperativo que move um corpo para outro e sustenta a rede de olhares que norteiam o mundo:
«Não sabemos pôr os olhos dos outros dentro/ de nós e com eles ver o que os outros vêem/ não dessa arte não sabemos e talvez seja/ melhor assim entretanto treinamos a outra/ arte a de inventarmos os outros e a nós/ com os nossos olhos míopes/ oleiros do mundo., pag. 433».
Eis porque espero pelo próximo livro do Carlos como Mandrake por Shangri-La.
       

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