quinta-feira, 31 de março de 2011

MONSIEUR LE VENT

«- Votre aéroport?
Tous ceux qui me conduisent vers des palmiers».
A resposta é de Salah Stétié, brilhante poeta libanês. Há quinze anos a minha concordância seria imediata, nutria a ideia de que a palmeira está para as árvores como o tigre para os animais domésticos.
A minha travessia do oásis de Hadramouth, no Yémen, em 1997, um palmar de 300 km recortado por cinco pequenas cidades, abateu-me um bocado o mito do oásis, afinal ralos como um capitoné coçado e de botões arrancados. E tão chochos de sombras! Diria até, endemoinhadamente abstractos: como cogitar um encontro debaixo da palmeira x? E que insonsas para os enredos que pedem discrição, para um alpendre onde um segredo possa dar passos seguros!
Cinco anos de Moçambique confirmaram-no: a palmeira – e o coqueiro – é um sinal gráfico na paisagem, um borrão de Giacometti. Com excepção dos períodos muito ventosos onde se prodigalizam em pontes e flique-flaques. Aí gosto.
O que me traz ao tema que comungo com o poeta libanês: o vento. Diz ele: «o vento joga um papel importante na minha poesia: associo-o à espada como se fosse um juiz de armas convidado a separar o inseparável, a desequilibrar os equilíbrios.» Aqui sim, estou em casa: pélo-me por uma ventania que desmanche a risca ao meio dos abismos. Talvez por que, como diz Bolaño:
«A literatura, ao contrário da morte, vive na intempérie, na desprotecção, longe dos governos e das leis, salvo a lei da literatura que só os melhores entre os melhores são capazes de romper. E então já não existe a literatura, mas sim o exemplo».
O fascínio do vento sempre me acompanhou. Desde que li no Fédon de Platão que havia um menino que tinha medo de que depois da morte o vento arrastasse a sua alma. Identifiquei-me logo. Já chamei a um livro publicado Carta de Ventos e Naufrágios, e trabalho numa antologia universal de poetas que escreveram sobre o vento e que se chamará Museu do Vento.
Aqui deixo o último poema que escrevi sobre o vento e que é uma evocação de Joris Ivens, o cineasta que no fim da sua vida fez um documentário sobre o vento:


DO VENTO

Descobrir o rio como um puzzle em desordem:
Joris Ivens, na  idade em que os pescadores de esponjas
                            pedincham por botija de ar,
empreendeu enxertar bambus no coração da moviola
e detectar no turbulência dos gansos a influência do mistral.

Tinha-o farejado nos cabelos da Vénus de Boticelli,
                      nos poemas de Shelley, Lorca e Saint-John Perse,
no admirável Wind de Sjostrom;
                                                    matutou –
haverá notícias de ter estoirado o vento algum vitral?
Ainda o abalava o reflexo do deus das nuvens
no impávido rosto de Buster Keaton
que lhe move batalha em Steambot Bill Júnior.
                     Joris Ivens suspeitava que o vento floresce
           no miocárdio,
como a insónia de Deus.

E quem, tão esplendidamente, anula a mediação?
Ainda ontem à noite desprendeu-se a prumo do hálito
quente da cal e desabotoou abismos
                    (pelo menos para quem habita no sétimo),
perfurou os becos da cidade, virando contentores
         e jacarandás, para logo estacar como uma moeda
de perfil, uníssona, cara e coroa
no abismado silêncio de uma gota.
Depois, pela alba,
                           (nascia ainda a estridência dos pássaros
do ventre da escassez),
voltaram as rajadas à urbe, 
escavando-lhe no rosto as nódoas assanhadas da melancolia.
                 O que dará notícias, relatório de perdas e danos.

Mas para Ivens, só o vento, que rebenta a pele das coisas
                        e embebeda os mananciais
podia trepanar o espectador,
e aliviá-lo da ressaca de Deus,
restituindo-o ao sentido dos gestos. O vento,
que não admite heteronomias, vive de gorjas,
                    aventava o cineasta, e
a mais ínfima poeira é para ele um papillon.
                    E mesmo que, despontando do seu miolo,
o opróbrio dos corvos alastre pelo céu das sementeiras
            a prontidão da morte, (a mesma que transforma
os cipestres de Van Gogh em tochas vivas), diga-se:
                       no seu ondear respira a seda.     
Certo é que tudo na visão é rasura, plano, lacuna,
                  até o seu sopro decapitar os impasses
e ganharem serrilhas as pedras e o rio dos mortos
se cobrir de reflexos de folhas douradas,
enquanto as asas do bezouro se alçam abruptas
contra a moléstia e os incandescentes caninos do infinito.

Pelo menos para Joris Ivens, o holandês errante
                    que atravessou a China, a Rússia, o Vietname
sem esmorecer com as ponteiras de aço
que desenhavam obscenas simetrias no bolor dos ideais,
pois vivo é aquele que morre a cada instante e
                          (trouxe-lhe o vento, esta carta de longe)
              quem respira ultrapassa uma fronteira.





3 comentários:

  1. Anaxímenes aplaudiria de pé, assim como eu!
    Acho o máximo os volteios e preliminares que você engendra para introduzir o tema central de seus textos!
    Bjs

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  2. O seu sorriso já é uma grecidade, mas fazer-me reler Anaxímenes, que só tenho em antologias, é do domínio da pura maldade. Uma maldade que apraz. E, na verdade, contra as leis da idade e da gravidade, sinto-me mais leve, mais aéreo, um nijinski da vogal. De imediato agradam-me nele as subtis proporções entre o raro e o denso – e densidade é uma palavra que uso muito, pois acredito, pelos vistos como ele, que não somos iguais e que pelo contrário somos compostos de densidades diferentes.
    Beijinho, cabrita

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  3. Rarefação e condensação...e não é isso a vida dos homens?! A metáfora eólica é perfeita!
    Beijinhos, muitos!

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