terça-feira, 22 de março de 2011

TRISTIA/ O DIA MUNDIAL DE POESIA


camille bombois

Felizmente acabou, um dos dias mais abomináveis do ano, o do Dia Mundial da Poesia, em que toda a gente anda com a «poéisia» a amendoar-lhe a boca. Como diria o Gombrowicz, tanto açúcar junto enjoa.
Lá mandou ofício a Associação de Escritores Moçambicanos aos 500 oficiantes da «poéisia» para irem aos jardins da sua sede mostrar as guelras e juntar três sílabas das mais líricas ao esterco do mundo.
Se estivesse em Portugal seria a mesma coisa, e já participei equivocadamente, em nome de causas, nesses matadouros de versos. Com direito a emissão televisiva e transformação do evento em circo político.
É invariável, o fedor impregna, seja qual seja a latitude.
A crer-se em tantos amantes da «poesia» devia ser um estoiro de vendas, mas não, a ingrata vende cada vez menos, em Portugal anda-se pelos 400/500 exemplares por livro, a serem consumidos a conta-gotas, em Moçambique também, em toda a Europa o género está cada vez mais acantonado em nichos, em todos os EUA Ezra Pound vende ao ano 600 exemplares (lamentava-o Octavio Paz, no seu último livro), o que é ridículo – que longe estamos do tempo em que Neruda vendia um milhão de exemplares com os Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada. Tanto amor à «poesia» e veja-se a Grécia, a terra de Homero e Píndaro (e já agora de Seferis e Elytis) onde os cabeleireiros são considerados uma profissão de risco, com direito a reforma completa aos 50 anos, e um poeta morre de fome.
A mim o que me vale são os pavões do palácio da presidência, de que sou vizinho. Enquanto houver pavões eu mantenho-me (normalmente dá para um mês de refeições, e com as penas faço almofadas que vendo). Sempre que acabam tenho de mudar de país.
Entretanto, ocorre-me o telegrama de Marianne Moore sobre Poesia: «Eu também não gosto dela./ Ao ser lida, porém, com um total desprezo, descobre-se/ apesar de tudo que o genuíno aí tem o seu lugar.»
Mas, passado o vómito, nada me impede de exercer o meu voto:


TRISTIA
                               para o Fernando Santos

Estava em armazém, esta fala.
Ainda o mar era marmóreo.
Estava em armazém, esta fala,
atrás da porta canelada, em zinco.

Não que fosse secreta, a luz
simplesmente não tinha nascido ‘inda
sob a frincha que enche de clareiras
as moitas onde os ursos se cimentam.

Naturalmente nada cresce, se a chuva
não auxiliar, se um relâmpago
não provocar um látego na polpa
do pêssego que anseia morder a terra.

Pelo menos nenhuma criança trepará
desembestada pela ombreira
sem o bom conselho dos maus hábitos,
a promessa de chafurdar nos ninhos,

de lambuzar de mentiras o focinho
do sagui que esconde sob o tampo     
da carteira. E nunca por dentro do óbvio,
do riso, crescerá - como pelo veio do sono.

É manhã. Recomeçam as beatas
a acumular-se nos cinzeiros, as beatas
que enchem de luzes mortiças os conventos,
enquanto na tv passam modelos e os martelos

repicam nas obras ao redor, e ruidosas buzinas
se entredevoram, e deus se abstrai, fascinado
pela iridiscência nova das suas veias
de silicone. Eu saio para a rua, há um ano

que saio à procura dos botões-de-punho
(ouro e madre-pérola) que me foram gamados
no último festival do Dia Mundial da Poesia.
Saio, a pau com tudo, como o detective verde

que já se esconde sob as pálpebras
do moribundo. Ai do moribundo que pisque,
da osteoporose que assobie saudosa
das atonalidades da alegria! O detective

verde registará a gafe, o mais ínfimo grão
de moléstia, a chispa que desafine o coro
das línguas mortas. É de relva o seu
camuflado e a beretta está a postos!

Saio e vejo que flanam, saídos da flanela
do inverno para a primavera dos jardins,
as primeiras t-shirts cingidas ao corpo
que a si mesmo promete resgates,

imenso dano - o imundo contágio,
diria a culpa dos que advertidos
se abstêm.  Eles sabem, o amor está
no fundo dos corpos e vem à tona

à primeira oportunidade, entrevendo
bóia. A carne é a bainha da espada.
E nunca se perguntam onde é a atribulação,
engendram-na pelo simples gesto

de aparecerem, cravejados de músculos,
transpirados, o olhar solto, que até no voo
do flamingo capta sinais, o vinco
do consentimento. Observo-os da esplanada,

ciente de que o seu intratável domínio
se sublimou em mim, noutro compasso,
em fluxos e atritos incorporais,
e fungo - terá sido esse trespasse

compensatório? A profundidade
que ergue ilhas vale a perda
do histrionismo, ou em hologramas
nos afundamos até o corpo capotar,

indigesto? Incomoda a Primavera,
divisar no horizonte um corpo afiado
que nos corta a respiração ao clamar
por maior velocidade, que a alma

não talhe ao sorriso de outrem.
Quando era miúdo amiúde se falava
em limpa-chaminés, os brônquios
atracados na fuligem. Depois

as chaminés emudeceram
ou foram levadas por assistente
social para algum asilo
onde em vão aguardam visitas

fugazes ao lado de outros temas
bastamente desencarnados
como o marxismo e os beatles,
todos eles antes eternos, tal

a glabra cabeleira do Pai Nosso
que farejou no punhal de Sitting Bull
o sangue do General Custer.
Agora só nos interessa o amor,

o seu pleito ou a falta dele, porque
amar é uma variação atmosférica
e degenera a rodos numa intensidade
de luz que nos cega. E embora o ardiloso

pensamento à falta de fateixas
desenhe cais telescópicos - é duro
ganhar assim o pão do espírito, a sensação
de que só pela imprevisível ventania

que nos palpa as meninges
nos salvamos de andar em círculo
como as roscas. E magoa, afinal
mais do que sustentavas, ó Seneca,

pois tudo o que chega de fora
reclama coração. Bem me disfarço
de detective verde, vou ao armazém
fornecer-me de truques e falas novas,

ao armazém que se dissimula atrás
da porta canelada, em zinco, e amanheço
armado de novos sustos e do acicate
da indignação, reabastecido pelo pernicioso

costume da puta da idade nos tratar
como podengos, com coelhos nas costas
e lebres à frente…- mas sempre na dúvida:
quem afinal me roubou os botões-de-punho?   

3 comentários:

  1. Obrigado! Tenho saudades tuas, hoje que vou almoçar com o Hélder e o Teófilo ao Fidalgo. Hei-de comer, por ti, os pézinhos do Eugénio e atravessar o Camões a ouvir os teus passos. Abraço.

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  2. Caro António Cabrita, concordo inteiramente com o seu comentário. Bem haja! - Ruy Ventura

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  3. 300 livros é agora por cá a tiragem mais comum, quando não menos, e era preciso, para a edição se esgotar, que roubassem mais uns quantos como aí o seu “Não se Emenda, a Chuva”. Ontem, neste burgo, foi o silêncio absoluto. Felizmente.

    Não perco um post. Abraço.

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