quarta-feira, 9 de março de 2011

A ESPADA DO SAMURAI E A SIMPLICIDADE DA ESCRITA

klee, cena da batalha
Sempre que ouço alguém a evocar a simplicidade como uma qualidade essencial à escrita eu fico muito irritado, prestes a sacar do meu canivete-suíço para exercer na criatura os meus dotes de barbeiro, manicurista e autopsiador.
Rondam, em todos os momentos da nossa vida, estes profetas do ribeirinho, sempre prontos a querer enxertar nas margens do Trancão (um afluente que mal mata a sede a lesmas e andorinhas) o caudal do Tejo. É que nada se reduz sem perda e, por outro lado, a simplicidade a resgatar não é a do pé para a mão, e é difícil como o catano.
Se essas bestas soubessem o que custa um haiku calavam-se e nunca fariam da «escrita de um só sabor» o seu dogma.
Tive um amigo que quando eu era jornalista me massacrava sempre a cabeça com a “obscuridade” dos meus artigos e repetia sem parar: o Schopenhauer dava sempre os seus livros a ler ao sapateiro, antes de os publicar. Ora, eu não sei onde é o que engenhoso foi buscar esta informação, mas há aqui gato escondido. E não creio que o sapateiro entendesse patavina do que lia, por dois motivos, a) seria então impossível desconhecermos hoje o nome do sapateiro, esse adiantado mental que discutia tu cá tu lá os argumentos dum dos maiores espíritos da sua época, b) porque, como explica Wittgenstein, apesar de ser possível descrever os sintomas do sarampo pelo telefone, o nokia de última gama não permite transmitir a ninguém a experiência do sarampo.
Ora, neste factor está tudo: a aglutinação da experiência e a sedimentação desse saber num fluxo intuitivo que faz o discurso operar por saltos quânticos e não de forma dedutiva, é que transformam não só quem a viveu como multiplicam os seus níveis de leitura e de interpretação do que foi verbalizado. A experiência multiplica os contextos, dilatando as virtualidades da massa do texto, as suas significações – e isso não é transmissível, tem que se experimentar.  
Para os Dogons havia 24 níveis de interpretação da realidade, e por iniciação, ao longo dos anos, subia-se degrau a degrau a pirâmide onde enfim se podia perfazer a panorâmica. Os enunciados eram os mesmos, a complexidade da sua interpretação é que se ia tornando cada vez mais complexa.
Acontece que cada um de nós é um Dogon no seu itinerário, ao encontro do enigma feliz que a vida é. Daí que aquilo que o sapateiro lesse no texto do filósofo não tivesse a mais remota hipótese de ser o mesmo que era entendido por este. Percebemos que esta vontade de tornar o sapateiro igual a Schopenhauer seja ainda uma herança dos mandamentos da Revolução Francesa, que estavam correctos na base mas eram equívocos a jusante. Ou seja: nós devemos ter todos as mesmas oportunidades (e fala-vos um filho do operariado), mas o que cada um faz com isso torna-nos irremediavelmente diferentes e por isso hoje só conhecemos o nome do autor de O Mundo Como Vontade e Representação.
Ora, explicava Eliot, “quando a mente do poeta está perfeitamente equipada para o seu trabalho, está constantemente amalgamando experiências díspares”, as quais formam novas totalidades. A estas afluem todos os recursos e não apenas uns ou outros – oponhamo-nos a todas as modalidades redutoras. Não há poemas simples.
Mas este conflito emerge periodicamente, com vários nomes, no território da poesia, reacendendo uma guerra antiga: a que se trava entre a memória e a imaginação, i.é, entre o velho e o novo, como se não pudessem e devessem conviver.
Sempre achei um mistério esta interdição de um trânsito nas duas direcções, na medida em que uma sem a outra propendem a coagular. Nem a inteligência que as imbrica e as devém operatórias consegue actuar sem recorrer a uma e a outra à vez, ou simultaneamente, pois a memória inclusive só se actualiza pela recriação. E nesta há uma parcela de imaginação.
Atentemos neste poema de Ungaretti:
         CASA MIA 
         Depois de tanto tempo
         surpresa
         um amor

         Julgava tê-lo dispersado
         pelos quatro cantos do mundo
Aparentemente, nada há mais fácil de assimilar, a legibilidade do poema é imediata e de uma forma tão despojada, anti-retórica, e abrupta: dir-se-ia que nova (- e em 1919, ano da sua publicação, foi).
Não obstante, o poema só dá a metade, para a compreensão plena do que aqui está em jogo e para o inteiro significado do poema terá de associar-se os versos finais ao esquartejamento de Osíris, um mito egípcio (Ungaretti nasceu e viveu em Alexandria), um deus retalhado e espalhado pelo mundo aos pedaços, sacrificado pelo amor (e de tal forma dispersado que se perdeu para sempre o rasto do pénis – ó vã ventura de ser Deus!).
Quem não conhecer a referência só apanha o poema pela metade – já é alguma coisa mas não é o todo.
Imaginação e memória em conjunto é que fazem o pleno, o sagrado (a memória) e o profano (a imaginação) conluiados é que permitem o salto e a escapatória:
              “Quem disse que a morte mata.
                Quando se cavalga o mito em pêlo?”
                Murilo Mendes
Vejamos este poema de um verso do meu último livro:
               “Um vidro:
                                enche
                de cerejas a mão!”
Eu procedo aqui a um raccord de cinema através do mecanismo da elipse, a qual me autoriza a deslocação da imagem de um vidro espetado na palma da mão e do sangue a espalhar-se para outra duma mão cheia de cerejas.
Este verso/haiku, aparentemente tão simples, seria absolutamente incompreensível há século e meio, antes da invenção do cinema ter fragmentado o espaço e nos ter habituado às suas descontinuidades de tempo e espaço, a elipses e raccords. Foi preciso um século de aprendizagem de um código novo para que esse poema se tornasse claro como água.
É conhecida a história de um pintor japonês afamado porque tudo o que pintava parecia ter vida. O imperador, que queria denunciar o charlatão, mandou-o chamar e perguntou-lhe se ele conseguia desenhar uma tartaruga que tivesse vida. Ele não desmentiu, o que deixou o imperador espicaçado, e então este perguntou-lhe quanto tempo e do que ele precisava para essa façanha. E ele pediu: dez anos livre de dificuldades financeiras. E durante uma década o pintor teve um «subsídio de habilitação», ao mesmo tempo que a lâmina do carrasco real era amolada, para o caso do pintor falhar. Ao fim do tempo acordado, chamou-o o rei, e ordenou, desenhe a tartaruga. O pintor mandou então desenrolar na sala do paço uma folha de papel de cenário, pegou no pincel e, de um só traço, desenhou a tartaruga. Ficou toda a gente suspensa pela facilidade com que o desenho foi feito e voltaram a prender a respiração quando viram a tartaruga levantar-se nas patas e ir até ao fundo da sala.
A questão aqui não está no fluido desemaranhamento do traço, aparentemente tão simples, mas (meus caros ejaculadores prematuros) nos dez anos que foram necessários para a sua execução.   
Por isso repito: sempre que alguém me fala em simplicidade eu mando amolar a espada do samurai.
   

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