hokusai |
Prometi que não publicava mais poesia nos próximos dias. Devia estar calado. Mas a culpa não é minha. Explico-me.
Há que não ter medo das enormidades: esta noite, um selvagem estacionou o seu fô by fô à frente do meu prédio e abriu o chavascal.
Às duas e trinta da manhã o sonho dele era ser Dj e o meu ter uma bazuca.
Ainda roguei que um meteorito o impactasse numa sandes de poeira, o que me aliviaria de ter de passar ao crime, mas os flatos musicais continuaram impiedosos.
Não me coube outra solução. Levantei-me, à procura de lenitivo.
Peguei nas traduções de Kenneth Rexroth da poesia japonesa, nas de Octavio Paz, numa antologia francesa da Gallimard de clássicos japoneses (traduzida e prefaciada por G. Renondeau – que nome!), e pus-me a cruzar versos e a informação. Entretanto, na nota biográfica que Jorge de Sena apôs às suas traduções de Bashô, descubro que «bashô significa banana, e é nome adaptado pelo poeta, em homenagem irónica à bananeira que havia em frente à porta de sua casa». Não me lembro de alguma vez ter reparado nesta informação e dou conta que Bashô, ao escolher esse nome para si, inventou muitos séculos antes de Duchamp, os ready-made. E sentado sob o frondoso relâmpago do riso liberto-me do chinfrim que está lá fora e descortino novas variações, uma senda nova para velhas formulações. Saiu o que se segue, reajustado ao cataclismo que abateu o Japão:
BATER EM CASTELO A VIA LÁCTEA
Tenebroso: quem
bateu assim em castelo
a Via Láctea?
Sem uma palavra prévia,
a cidade e o tsunami
emudecem a câmara.
Apoderou-se de tudo
o ladrão – de tudo
menos da lua.
Não sejam insensíveis, também
foi comprida a noite do mosquito -
comprida e tremebunda.
Nasceu do nada, o dragoeiro
que empavoa o pátio
da casa derruída?
Branco da caliça, dessoterrado,
suspenso da mão da mãe, o miúdo
cai em si ao ver a flor da cerejeira.
Um lago o antigo jardim, engolidos
os baloiços por águas tão frias
que não dormiu toda a noite a gaivota.
Este caminho, já
nem os néons o percorrem,
salvo o crepúsculo.
Nove na escala de Ritcher:
debaixo do capacete do bombeiro
um grilo canta!
Papagaios de papel:
nenhum kimono de seda
sobreviveu ao pranto da terra.
Terra bendita, aquela em que se pode
perguntar, viste por aí a minha gueixa,
em vez de, viste por aí a minha gaja?
Come serpentes o faisão,
dizem-me. Já nada me espanta.
Hoje algo roeu os dois.
Fica sem rugas,
o arrozal, quando a terra
o engole!
Procura a sua casa sob os escombros.
A casa ou o seu silêncio? Mais
não pede a andorinha, na Primavera.
Salvé, o espírito ecuménico
com que os navios desabrocham
nos ramais do aeroporto!
A avó descobre que são jovens
as suas lágrimas. A adolescente cata
o seu email, da placidez do luar.
O ruído das turbinas parou:
o som das cigarras
serra a esperança.
O mais famoso sapo do mundo
salta e ressoa fundo no silêncio
em que deus escondeu a cabeça.
Sobre a chaminé tombada
em tufos de sangue, sapateia
o corvo: reportagem da CNN.
28/03/2011
Nota: «bater em castelo» em Portugal, é o que se faz às claras dos ovos para fazer bolos.
Metade dos haikus é variações a partir dos clássicos, face aos quais adopto, na maior parte dos casos, grandes liberdades, a outra metade brotou do fluxo. E claro que a sequência narrativa é minha.
Assim de repente, tremi grau 9 na escala de richter. Agora, estou a sentir as réplicas. Só espero que o "fô by fô" the martele o crânio mais vezes. Abraço !!!
ResponderEliminarProfundo... Como a querer tocar as profundezas de uma dor sem medida!
ResponderEliminarO mais famoso sapo do mundo
salta e ressoa fundo no silêncio
em que deus escondeu a cabeça.
é isso.
Forte abraço!
tudo culpa do Leminski.
ResponderEliminarinjetou-te nos canos a heroína do essencial.