foto de luis bastos |
UM DOMINGO NOS TRÓPICOS
Adormeço com dores de garganta, mas resignado, depois de um chá quente, porque o trajecto da única farmácia de serviço nocturno perto não é seguro.
Às quatro da manhã a Teresa acorda com vagidos da miúda mais nova e resolve ir averiguar. Põe o pé no chão e soa o alarme: água. Acende a luz e eu confirmo: quase que dava para a minha ambicionada pesca à pérola.
Temos a casa inundada, e ao fundo ouve-se o jorro de uma torneira. Ela corre para a co- zinha, na marquise rebentou o cano do esquentador e a água sai aos borbotões. É a segunda inundação este ano. Olho as pilhas de papel sob a minha secretária, elevam-se dum rodapé líquido com três dedos pelo menos e os livros nas estantes estão sob ameaça. É a minha vez de correr para fechar a torneira de segurança na escada. As miúdas acordam e durante 15 minutos é uma festa, puro ski aquático.
São quatro e meia e decidimos voltar a dormir, antes dorminhocos nenúfares que bombeiros de serviço. O mal está feito, pode esperar por baldes, esfregonas, vassouras e toalhas. E às oito chegará a empregada, sempre será um reforço.
Da outra vez, uma das miúdas não fechou bem a torneira e quando voltou a água às 4h30 (a água é racionada, tem horas para correr) correu livremente até nos sonharmos dentro de uma catarata. Então alguém acordou, tarde de mais.
Foi assim que estreámos a casa, há três anos; chegámos com os dois camiões às 8h da manhã e às 8h 30 o elevador estacou, avariado. Destino: um sétimo andar, com mobílias, tarecos e sobretudo livros, dezenas de caixas com livros. Subo as escadas, furioso, e vejo manar da frincha da porta um manto de água. Abro a porta e descubro que a casa é um lago. Um dos trolhas que tinha retirado as mobílias do inquilino anterior havia aberto a torneira para se dessedentar à hora em que se corta a água e vendo-a minguar num fiapo distraiu-se e deixou-a aberta.
É a terceira ruptura do cano desde 2010, já experimentámos cinco ou seis canalizadores, em vão. São todos rapazes de biscate, não há nenhum que faça o trabalho bem feito, pelo menos para o nosso orçamento. Também temos problemas com as ligações de electricidade – as lâmpadas suicidam-se com uma frequência desanimadora, e não conseguimos um electricista confiável. São arranjinhos provisórios. E o elevador passa metade do ano avariado.
O meu caso não é particular, está no quadro geral do equipamento urbano, a degradação é geral. Há dois anos que lamento a minha falta de tomates para me mudar para uma flat fantástica, com 2 salas, três casa de banho, e quatro quartos, numa zona mais central da cidade, e mais barata cem dólares do que o meu apartamento. Simplesmente é num décimo terceiro andar sem elevador. E eu sei como invariavelmente me lembro cá em baixo de que esqueci qualquer coisa lá em cima.
Às seis da manhã damos conta que é impossível voltar a Morfeu, as miúdas ficaram excitadas com a aventura. E só nos resta pegar nos baldes e esfregonas. A Jade quer apanhar a água com a rede mosquiteira. Ainda propus, e “se deixássemos secar por si – não há-de levar mais que 4 ou 5 dias…”, mas isto é gente que afinal não quer uma piscina em casa. Lá me dobrei à vontade colectiva e apanhei cinco baldes de água à pazada, antes de pôr-me a torcer toalhas, centenas de toalhas, até os músculos rechinarem. A Ana empurrava a água à frente da esfregona com os headphones postos, eu abstraía-me pensando que era um aviador das esquadrilhas de Kadhafi. Ou culpando o João Paulo Cotrim – isto só pode ser um mau-olhado do sacana, realizo, faz anos e eu é que as pago.
Durou até às nove, às 9h 10 tomei um duche frio e ainda a escorrer água sentei-me à secretária, para escrever esta nota. Até ao meio-dia tenho ainda que preparar as aulas de amanhã. Tema: o Belo de Plotino a Kant. Depois temos feijoada em casa de amigos.
A dor de garganta passou.
Caríssimo, reitero (ainda que o diga pela primeira vez aqui): parabéns pelo blog! É de se celebrar. Primoroso, divertidíssimo, ludibriando tsunamis caseiros e repimpanços tecnológicos com uma performance escrita notável!Enfim, na linha de sempre, surpreendendo. Cuida dessa garganta, que a tua voz faz falta. E boa feijoada!
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