quinta-feira, 24 de março de 2011

JOHN BERGER, fosfato de cálcio

Este post é para os meus amigos brasileiros , pois julgo que o John Berger, pelo menos como poeta, não está publicado no Brasil. Conheci-o numa tradução espanhola e depois pedi ao Helder Moura Pereira que traduzisse o livro para a defunta «Íman Edições», que dirigia com a Teresa. Infelizmente, o princípio da realidade impôs-se e fali antes de conseguir publicar «E OS NOSSOS ROSTOS, MEU AMOR, FUGAZES COMO FOTOGRAFIAS», na belíssima tradução que aqui transcrevo. Fiz ainda a diligência de o recomendar a outro editor, o da «Quasi», mas desconheço se o livro chegou a sair antes da «Quasi», por sua vez, ter falido. A beleza destes textos é que é imemorial e espero que seja um lenitivo para a ciática do Tuca.

As belas fotos, inéditas, são do fotógrafo moçambicano Luís Bastos:

ERA UMA VEZ


Primeiro foi uma lebre. A dois mil metros de altitude, numa fronteira de montanha. Para onde se dirige? – perguntou o funcionário da alfândega. Para Itália, disse eu. Porque não parou? – perguntou ele. Julguei que me tinha feito sinal para avançar, respondi. A partir desse momento a conversa acabou, porque uma lebre atravessou a rua a correr, a poucos metros de nós. Era uma lebre magra, com uns tufos na ponta das orelhas acastanhadas. E apesar de não correr com muita velocidade, corria para salvar a pele. Às vezes acontece.
Alguns instantes depois, a lebre voltou a atravessar a rua para o outro lado, perseguida desta vez por uns cinco ou seis homens, correndo ainda mais devagar que ela e com o ar de quem tinha acabado de levantar-se da mesa. A lebre corria na direcção dos rochedos e dos primeiros pedaços de neve. O funcionário, aos gritos, dava indicações para apanharem a lebre – e eu segui o meu caminho e transpus a fronteira.

O animal seguinte foi um pequeno gato. Um gato completamente branco. Vivia numa cozinha de chão irregular e chaminé aberta, com uma mesa desconjuntada e paredes rugosas, caiadas de branco. Quando estava junto à parede, o gato tornava-se quase invisível, só se viam os seus olhos escuros. Quando virava a cabeça, desaparecia no interior da parede. E quando se punha aos saltos no chão ou em cima da mesa, parecia um ser que se evadira da própria parede. O modo como aparecia e desaparecia dava-lhe a intimidade misteriosa de um deus do lar. Eu sempre achei que os deuses do lar eram animais. Por vezes visíveis, por vezes invisíveis mas sempre presentes. Quando me sentava à mesa, o gato saltava-me para os joelhos. Tinha dentes aguçados e tão brancos como o seu pêlo. E uma língua cor-de-rosa. Como todos os gatos de pouca idade, passava a vida a brincar: com a cauda, nas costas das cadeiras, com o que ia encontrando no chão. Quando queria descansar, procurava um sítio confortável e aí ficava. Ao olhá-lo, fascinado, durante uma semana, notei que ele escolhia, sempre que podia, uma coisa de cor branca – uma toalha, uma camisola, roupa interior. Então, de olhos cerrados e boca fechada, enrolava-se todo e tornava-se invisível no meio das paredes brancas.

Uma aldeia nos montes, não muito longe de Pistoria. O cemitério da aldeia era rectangular, com muros altos a rodeá-lo e portões de ferro forjado. À noite, a maior parte das sepulturas ficava iluminada, cada uma com a sua vela. Eram luzes eléctricas, ligadas a iluminação pública. Ficavam acesas toda a noite e eram muito mais do que os candeeiros da rua da aldeia. Logo a seguir ao cemitério, a estrada fazia uma curva acentuada de onde saía um caminho de terra batida que conduzia a uma quinta. E foi ao longo desse caminho que eu vi os patos cinzentos.
Em várias outras ocasiões tinha já encontrado a família toda. Instalavam-se muitas vezes numa escarpa coberta de erva, sob uns silvados mesmo em frente do cemitério. Da primeira vez que vi as luzes do cemitério ao crepúsculo, reparei nos patos meneando-se de um lado para o outro sobre o verde nocturno da aldeia. Pato, pata e seis filhotes.
Mas desta vez era apenas o macho, quase imóvel no meio da estrada, de cabeça baixa mordendo o pó. Só ao fim de um minuto, mais ou menos, me apercebi de que estava sobre as costas da pata, totalmente invisível debaixo dele. De vez em quando abria as asas, que apareciam então sob as patas do macho, para depois se aquietar e voltar a mergulhar no pá da estrada. O ritmo da investida aumentava. Por fim, atingido o clímax, o pato saía de cima da fêmea e esta regressava à sua forma real. E ele deixava-se cair por terra. Ali, deitado a seu lado, sentia-se como se tivesse sido alvejado. Um pequeno saco cinzento carregado de chumbo e com a forma de um pássaro. Ela olhou à volta, levantou-se, sacudiu as asas, endireitou o pescoço e lá foi, confiante por saber que assim os filhotes já a podiam encontrar outra vez.

Certa noite, passeando no campo perto de Prijedon, na Bósnia, descobri um pirilampo solitário, com a sua luz de âmbar verde, no meio de umas ervas. Apanhei-o e levei-o na ponta do dedo, onde reluzia como opala eléctrica num anel. À medida que me ia aproximando de casa, as outras luzes, demasiado fortes, faziam com que se apagasse.
Pu-lo em cima de umas folhas verdes na cómoda do meu quarto. Sobre o toucador havia um espelho que ficava mesmo em frente da janela. Deitado de lado na cama, eu podia ver uma estrela reflectida no espelho e por baixo o pirilampo, em cima da cómoda. A única diferença entre os dois. A única diferença entre os dois é que a luz do insecto era um pouco mais verde, mais glacial e distante.

yellow II
            Onde estará agora Tony Goodwin? A sua morte afirma que nunca mais poderá ter presença em qualquer lugar: que cessou de existir. E, fisicamente, é verdade. Há duas semanas queimávamos folhas secas no pomar. Agora caminho sobre as cinzas quando vou até à aldeia. Cinzas são cinzas. A vida de Tony pertence historicamente ao passado. Fisicamente, o seu corpo, simplificado e reduzido ao carbono pelo fogo, reentra no processo físico do mundo. O carbono é pré-requisito de qualquer forma de vida, a fonte do orgânico. Digo a mim mesmo estas coisas, não para elaborar uma capciosa alquimia da imortalidade mas para não me esquecer de que é a minha concepção do tempo que está a ser interrogada impiedosamente pela morte. Não vale a pena usar a morte para simplificar as nossas vidas. Tony já não está dentro do nexo do tempo tal como é vivido pelos que, até há pouco tempo, eram seus contemporâneos. Mas estará sobre a circunferência desse nexo (circunferência de um círculo, não de uma esfera), tal como os diamantes e as amibas. E todavia também está do lado de dentro, como todos os mortos. Numa condição que é a de tudo-o-que-os-vivos-não-são. Os mortos são a imaginação dos vivos. E para os mortos, ao contrário dos vivos, a circunferência da esfera não constitui fronteira nem obstáculo.



A pulsação dos mortos
    tão interminavelmente
constante como o silêncio
que devora o tordo.

Os olhos dos mortos
      gravados nas palmas das mãos
enquanto caminhamos na terra
que devora o tordo.



UMA VEZ, EM AUXONNE

            A estação dos correios de Auxonne é muito pequena e a empregada tem olhos azuis. Fui lá somente duas vezes.
            Da primeira foi para te mandar uma encomenda; enquanto a empregada a pesava na balança, eu imaginava as tuas mãos a abri-la.
            “Quatro quilos e trezentos”.
            Numa encomenda feita com as nossas próprias mãos, há uma mensagem que não pode ser pesada: os dedos do destinatário a desatar o nó feito pelo remetente.
            Naquela estação dos correios, eu imaginava os teus dedos a desatar os nós que eu tinha feito em Auxonne.
Dez dias depois voltei à cidade e à estação dos correios, desta vez para te mandar uma carta. Lembrei-me do dia em que expedi a encomenda e de ter sentido uma certa perda. Mas que poderia eu ter perdido? A encomenda chegara em condições. Tinhas feito sopa de beterraba. E a garrafa de água destilada com flor de laranjeira, tinha-la posto sobre o armário, um pouco acima dos teus vestidos. A única coisa que se perdeu foi o fugaz futuro daquela encomenda.
O que choramos no luto pelos nossos mortos é a perda das suas esperanças. O homem-da-encomenda estava já morto, nenhuma esperança lhe restava. O homem-da-carta tomou o seu lugar.



Os Adãos e Evas
sistematicamente expulsos
com que tenacidade
voltam todas as noites!

Antes,
quando nenhum deles
sabia contar
e não havia meses
nascimentos música
não tinham número os seus dedos.

Antes,
quando nenhum deles sabia contar
sentiriam
o tremor por trás das pálpebras
a sede ao fundo da garganta
outra coisa que não
o perfume de flores infinitas
e o bafo de animais imortais?
No seu sono sereno
terá a ponta das suas línguas
procurado o botão de um outro gosto,
mortal e transpirante?

Invejariam a ansiedade
dos que viriam depois da Queda?

As mulheres e os homens ainda regressam
para viver ao longo da noite
todo esse tempo imemorial.

E com a pontualidade
do primeiro pelotão de execução
a expulsão chega com a aurora.


DISTÂNCIA

Encheste o termos de café
guardaste as nossas pegadas para o caso
de ser preciso enfrentar o perigo
    da neve eterna
      que nada testemunha.

Inseparáveis, como carpinteiro e martelo,
ensinávamos a distância
a construir um tecto
    com as árvores
      por entre as quais fugimos.

No silêncio que ficou atrás de nós
já não ouvimos a longínqua
pergunta na casa de verão:
    E amanhã, onde
      iremos?

Ao crepúsculo os cães aparelhados receiam
que a floresta não tenha fim.
E todas as noites no meio da neve
    acalmamo-los
      com o nosso riso imprevisível.

blue I

UMA CANÇÃO DE AMOR

As montanhas são impiedosas
a chuva derrete a neve
há-de gelar outra vez.

Nos café dois estrangeiros
tocam acordeão
e os homens todos cantam.

As melodias ocupam
as bolsas do coração
as cavidades dos olhos.

As palavras ocupam
os estábulos
que mugem entre os ouvidos.

A música barbeia as maxilas
distende as falanges,
a única cura para o reumatismo.

A música limpa as unhas
amacia as mãos
extrai os calos.

Um café cheio de homens
vindos do gado encharcado
do óleo diesel, da pá eterna,

agora acariciando
uma canção de amor
com mãos menos rudes.

As minhas abandonaram os pulsos
e atravessam as montanhas
à procura dos teus seios.

No café dois estrangeiros
tocam acordeão
a chuva derrete a neve.


          Acordamos na casa de um amigo, onde havia um piano. Dormíramos num colchão, no chão. O piano estava no piso de baixo. As duas crianças da casa estavam a treinar um exercício antes de irem para a escola. Um exercício para quatro mãos. Às vezes enganavam-se e voltavam ao início da frase.
Se vivêssemos no século dezoito, quando todas as questões eram portas que se abriam de par em par para os jardins, eu podia perguntar-te: Lembras-te? Mas no nosso século, quando só não há limites para o mal e a indiferença, não nos podemos dar ao luxo de perguntas desnecessárias; em vez disso, temos de nos defender com as certezas a que pudermos deitar mão. E eu sei que tu te lembras.
As duas crianças tocavam de uma forma leve e compenetrada e as notas iam enchendo a casa. Estavas deitada de costas para mim, os teus seios nas minhas mãos. Nenhum de nós fazia o mais pequeno movimento. A música obrigava à breve audição e nós ouvíamos – olhando no vazio, tal como olhamos as flores do papel de parede no quarto de um hotel, sem realmente as vermos. Acordar assim, ao som da música tocada de forma tão leve e compenetrada por aquelas crianças, antes de irem para a escola, foi o mais perto que alguma vez poderemos estar de acordar em casa, meu amor, antes de partirmos.
    
blue II
          Aquilo que me reconcilia com a minha própria morte é, mais do que outra coisa qualquer, a imagem de um lugar: um lugar onde os teus ossos e os meus fiquem sepultados, atirados para ali, nus, juntos. Disseminados, numa confusão desordenada. Uma das tuas costelas está apoiada contra o meu crânio. Um metacarpo da minha mão esquerda repousa dentro da tua bacia. (Contra as minhas costelas quebradas, o teu seio, parecido com uma flor). As centenas de ossos dos nossos pés estão dispersos como areia. É estranho que esta imagem da nossa proximidade, apenas ligada por fosfato de cálcio, possa produzir um sentimento de paz tão grande. Mas é isso, precisamente, o que acontece. Contigo eu posso imaginar um lugar onde me seja suficiente não ser mais do que fosfato de cálcio.

4 comentários:

  1. Acho que John Berger nunca foi, de fato, publicado no Brasil, António. Talvez o crítico de arte, mas não com certeza o poeta, que disso eu haveria de saber.

    Obrigado pela parte que me toca como brasileiro. Os textos são suntuosos -- e mesmo milagrosos: o último já me bastou para, aplicado na lombar como cataplasma, fulminar a ensebada ciática.

    Vou repassá-lo a meus leitores, ao menos como lenitivo físico, pois grassa por aqui uma epidemia de males vertebrais, disseminada, parece, via internet por uma leitora do interior de São Paulo.

    Abraços

    P.S.: Um primor o seu adeus aos mais belos olhos lilases da história contemporânea -- e do Egito Antigo também!

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  2. Li no Tuca e logo corri pra cá. Ah, calma aí que vou ler tudinho, já, já... Se esse menino deu a dica, é que vale a pena mesmo. Os poemas, já lidos lá do Desinformação seletiva, um primor! Há, sim, de curar qualquer coisa, porque a poesia me tem feito economizar remédios...
    Abraços,

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  3. Caro Cabrita, postei três poemas do Berger (com uma destas fotos do Luís Bastos), tomando a liberdade de abrasileirar duas acentuações, fiel ao coloquialismo do autor. Evitei repetir quaisquer dos textos aqui postados, a fim de que os leitores da sucursal possam encontrar novas e maiores atrações na matriz.

    Descobri que apenas nove obras, das cerca de 30 publicadas por Berger, foram lançadas no Brasil, todas pela Editora Rocco, de 99 para cá. Entre elas está "Pig Earth" (estupidamente traduzida como "Terra Nua") que, pelo que pude deduzir de um resumo da Rocco, tem estrutura semelhante à de "And Our Faces...", alternando poema e prosa.

    Mais uma vez, obrigado pelos valiosos subsídios. E mais ainda pelo eficiente, milagroso trabalho do teu xamã da Mafalala, que deu cabo da minha ciática...

    Abraço

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  4. Quanta beleza e intensidade! Leva-nos a um lugar tão íntimo!
    Beijos e obrigada pelo tesouro!

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