sábado, 19 de março de 2011

NÃO SE EMENDA, A CHUVA IV: CRÓNICA DE UM CRIME ANUNCIADO

Confirmou-se o pior cenário. Tocou o telefone. Resmunguei como de costume mas lá atendi e ouço do outro lado a voz do Tavares, que me diz de chofre: «bad news…estou com um amigo que comprou ontem numa banca de rua o “Não se emenda, a chuva”, a oitenta meticais…». Portanto, as duas encomendas com exemplares meus que espero em vão há dois meses foram efectivamente desviadas nos Correios de Maputo por funcionário relapso e passadas a um vendedor de rua cúmplice. Apetece-me percorrer a cidade e bater banca a banca até achar o receptor e meter-lhe um cagaço de morte.
A Teresa pede que me acalme e veja a coisa pelo lado positivo: arranjei novos e inesperados leitores. Eu sinto-me menos tolerante e mais perto do serial killer que deseja examinar in loco se dentro de cada caixa torácica não se encontra um bandolim.
Vou-vos contar o que fiz ao último ladrão de livros que me passou no estreito. Era meu amigo e há anos que nos frequentava a casa, dormindo lá muitas vezes. E levava sempre os livros que pedia. Um dia descobri que os que pedia encobriam apenas o dobro dos livros que já tinha desviado para dentro da mala que usava sempre à tiracolo. Primeiro cortei-lhe o cabelo à máquina zero:
o meliante antes dos retractivos
aqui vemos o bicho macilento a fazer contas à vida, enquanto os meus familiares cumprem as minhas instruções. Eu estou em off, à frente dele, com um fio de electricidade descarnado que vou enrolar-lhe num escroto.
A seguir levámo-lo até ao alto da Torre, na Serra da Estrela, que, nesse Dezembro, estava branca de neve, despimo-lo, untámo-lo com alcatrão e penas, à antiga, e obrigamo-lo a descer nu pela estrada até Manteigas, uns quilómetros abaixo.
Depois levamo-lo para Lisboa, meio febril, a tremelicar o dente, e obrigamo-lo a entrar na Esquadra da Polícia em Benfica, com um cartaz que dizia, «Venho pagar os Retroactivos» e, numa das mãos, a cópia da lei de atentado aos bons costumes de 1953, e na outra um relatório de todos os pecados cometidos nos jardins públicos com as filhas e mulheres dos funcionários dessa esquadra, cujos nomes um amigo da justiça me havia fornecido.

A lei, pode-se consultar na notícia em cima, mas do relatório dos desmandos dele constava:
Jardim Botânico, com a Arminda (a filha do Comandante), a 18 de Novembro: Mão naquilo, aquilo na mão, aquilo atrás daquilo; Jardim da Estrela, com a Fernanda Girão (a mulher do comandante), 22 de Novembro: aquilo na mão, aquilo naquilo; Parque Eduardo VII, com a Raquel Martins (a mulher do capitão), 11 de Dezembro: a língua naquilo; Parque do Campo Grande, com a Martinha (a filha do sargento Getúlio), 14 e 15 de Dezembro: mão naquilo, aquilo na mão, aquilo naquilo, aquilo atrás daquilo; Jardim do Tourel, noite de 17 de Dezembro, com a Maria Bettencourt, filha do 2º cabo Jesus: mão na mão, mão naquilo, aquilo naquilo.
Não sei quanto lhe cobraram em retroactivos, convertidos em euros, mas soube que só um mês depois saiu do hospital, as pernas e os braços ainda engessados.
Hoje estou, na generalidade, com muito menos humor do que naquela altura. Vou sair agora de casa para a minha ronda pelas bancas de livros de Maputo. Os funcionários ladrões dos correios e os seus receptores que se cuidem.  

2 comentários:

  1. sinceramente foi dos textos mais divertidos e humorados que já li, nos últimos tempos. obrigado, mesma que a experiência seja a do desvio.

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  2. Eu já mandei vir alguns exemplares de Maputo. A ver se ponho a mão naquilo...

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