domingo, 13 de março de 2011

ROSA AMORIS/ belas traduções de VAV



O Vergílio Alberto Vieira é um homem sério. Tem para cima de 25 livros publicados, entre poesia, prosa, ensaio, e infanto-juvenis. Na poesia e na prosa, uma prosa com aroma a Saint-John Perse, minada de fulgurações, não lhe conheço uma linha que seja um lugar-comum, e no entanto continua um poço de dúvidas. Agora anda apaixonado pelo teatro. Onde houver lugar para aprender ele está. 
Onde ele não precisa de aprender é na tradução de poesia, a avaliar pelo volume que agora editou, Rosa Amoris (Livros de Horas, 2011), e onde colige poemas de Garcia Lorca, Marguerite Yourcenar, Ai Qing, René Char, Jorge Luis Borges, Odysseas Elytis, Octavio Paz, Lawrence Durrell, Iosif Brodskii, Pere Gimferrer e Rimbaud, e onde os poemas correm na fluidez com que pela alba um estilete desvela a manhã.
Eu fiquei siderado com estas traduções de Lorca, que me parecem das melhores que já li, bem como com as de Marguerite Yourcenar (que me obriga a ir reler a autora), de Durrell ou de Odysseas Elytis. Agradou-me muito Os Músicos Cegos, de Brodskii, e a sua versão de um poema curtíssimo de Gimferrer, Arte Poética, de uma condensação e dificuldade extrema e que se candidata a ter tantas traduções como as do haiku do sapo no tanque de Basho. 
Mas, o melhor é ler:


De Lorca

PANORAMA CIEGO DE NUEVAYORK
Se acaso não são pássaros
amortalhados de cinza,
gemidos rasgando a janela nupcial,
serão essas delicadas criaturas do ar
de quem irrompe o sangue novo contra a obscuridade
                                           [inextinguível.

Mas não, não são pássaros,
porque os pássaros chegam a ponto de ser bois.
Podem ser pedras brancas com a ajuda do luar,
porque se fala de rapazes feridos
enquanto os juízes não desenredam a teia.
A todos conhece a dor que se aproxima da morte
mas a verdadeira dor foge do espírito.
Não anda no ar, nem na nossa vida,
muito menos nestas esplanadas cheias de fumo.
A verdadeira dor mantém despertas as coisas
aos olhos inocentes dos sistemas.
Pesa tanto nos ombros o traje abandonado,
que o céu os acasala muitas vezes em rudes manadas;
e as que morrem de parto sabem à última hora
que todo o rumor se torna pedra e toda a pegada,
                             [latido.
            
Ignoramos que o pensamento tem esconderijos
onde o filósofo é devorado por bácoros e lagartas
e alguns rapazinhos idiotas já encontraram pelas
                         [cozinhas
pequenas andorinhas com muletas
sabiam ciciar a palavra amor.
   
Não, não são pássaros, não.
Não é um pássaro o que exala a turva febre da lagoa,
nem a ânsia de assassinato que nos esmaga cada
                                                [momento,
nem o anavalhado rumor de suicídio que nos agita cada
                                                               [madrugada:
é do casulo do ar que nos espreita todo o mundo,
e um pequeno espaço vivo o vergão de luz,
é uma vaga escalada donde nuvens e rosas esquecem
o grunhido que entra pelo ancoradouro do sangue.
Muitas vezes me perdi de mim
para tentar o ardor que mantém despertas as coisas
e só encontrei marinheiros deitados pelos saguões
e criaturinhas divinas enterradas na neve.
  
A dor grave, porém, invadia outras praças
onde cristalizados pés agonizavam dentro dos troncos,
praças de estranho céu para intocáveis estátuas antigas
e para a amorosa intimidade dos vulcões.
   
A dor secou a voz. Só os dentes permanecem,
os dentes que o silêncio espalhou pelo descampado
                                         [negro.
 A dor secou a voz. Aqui só a terra ficou.
 A terra que uma eternidade de portas
 Do rubor dos frutos torna próxima.


 De Yourcenar


UMA CANTILENA DE PENTAURO
Segundo
um papiro egípcio

De mim próxima está, a morte que te é tão próxima
Mais doce que o sonho, mais íntima que a sombra;
Como um vinho derramado, como o lótus florido;
De ti próxima, a morte repete o chorado canavial.
Pelo repouso exausto, pela improvável doença,
A morte é um harmonioso lago no interdito
[horizonte.
Como o vento bonançoso da tarde com seu manso
     [furor reconvertido,
A morte atrás de ti prepara a larga vela.
E vós, ó amantes, que para terra incerta navegais.
Deste festim se fez a morte convidada.
Ó precária flor do verão; Ó orvalhada sede;
Como hábil roubador de pássaros, a morte lança as redes.
E a sombra que fica é a funérea sombra do cipreste,
Que aos esposos concede o sono efémero.



De Char

O TUBARÃO E A GAIVOTA

Chegou por fim o mar com seu triplo concerto, o mar que fazendo uso da sua grandeza corta a hegemonia das dores absurdas, o grande cárcere selvagem, o mar mais sério que a marafona.
Assim, quando digo: anulei a lei, suspendi a moral, entreguei o coração, não é propriamente para me desculpar perante a divindade cujo rumor ultrapassa a minha persuasão. Nada, porém, do que até me fez viver e acreditar permanece à minha volta. Não serve para nada o estado de alerta das minhas sentinelas, minha juventude triunfará. Só ela me garante um poder efectivo e prático.
Por isso, cada ano um dia perfeito elege, um dia em que um tesouro cintila sob a espuma do mar, um dia em que nos olhos brilhará a estrela solar. Ontem desdenhava-se da nobreza, o ramo ignorava o fruto. O tubarão e a gaivota não se falavam.
Ó tu, arco-íris dessa margem tranquila!, a que aporta o batel da minha esperança. Faz com que esse porto de abrigo seja outra aurora, um horizonte ao alcance da mão para os que abatidos tropeçam na manhã.


De Brodskii

OS MÚSICOS CEGOS

Os cegos cercam
                             a noite.
É mais fácil
fantasiar os lugares
                              a noite.
Às apalpadelas vivem
os cegos,
e em suas mãos desfloram o mundo,
sem adivinhar sombra nem luz,
e   suas mãos ferem as pedras
diante deles colocadas, o interminável muro
é aí que se empurram os homens, as mulheres,
as crianças,
o dinheiro,
intransponíveis muros
que ninguém ousa derrubar.
Contra eles obstina-se
a música
e as pedras vingam-se,
e aí a música cala-se
torturada pelas mãos
de inumeráveis mortes.

É cruel morrer com a noite,
morrer às escuras.

É mais simples o caminho dos cegos,
os cegos invocam
                       os lugares.



Quanto ao Pere Gimferrer não desvendo a belíssima versão de Vergílio porque o melhor é manusear este precioso volume de 85 páginas, tendo a delicadeza de o comprar aqui. Autor e editor merecem.

1 comentário:

  1. Caro António Cabrita,
    Não consegui abrir a ligação que fornece. Será que poderia indicar o contacto da editora, ou de livraria onde o livro possa ser adquirido?
    Cordialmente,
    Hugo
    (os meus cumprimentos pelo seu blogue, que tenho seguido com curiosa atenção desde que o descobri há escassas semanas)

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