quarta-feira, 30 de março de 2011

CARTA A UM JOVEM ESCRITOR / 1

Rubens: Saturno o mais
competitivo
dos deuses, devora os filhos 
Escrevia um msn: “confirma-se o pilim”: para sossegar a minha mulher (em Portugal, pilim não significa o “peru” do Brasil mas dinheiro), que isto entre canalha pobre é sempre um ai Jesus, e vêm-me de súbito milhentas formas para nomear o el contado: pataco, cheta, mola, lecas, painço, palhaço… e outras de designar a relação com ele: andar à brocha, não ter um chavo, aquilo com que se compram os melões, teso como um carapau, ou mais sucintamente: estar teso (em Moçambique já fiquei baralhado por ouvir de distintas doutoras: “o meu marido não tesa”, sem saber se tal significa a disfunção sexual ou se ela está a gabá-lo como empresário de sucesso); estar nas lonas, andar aos bonés, ou a minha preferido, andar ao tio ao tio – digam-me lá se isto não é um título duma música do Pinxinguinha?
E é da relação com o dinheiro que agora se trata. Sempre tratei o dinheiro de forma instrumental e nunca aprendi a usá-lo como relação simbólica – o que, claramente, me tem prejudicado. Por isso ao pedirem-me um orçamento para algum trabalho, penso primeiro no tempo que levo a despachá-lo e na adequação monetária ao contexto (isto é, exigiria muito mais em relação a uma reportagem ao Expresso, de Lisboa, do que aquilo que peço ao Savana, de Maputo), não colocando em primeiro lugar o meu currículo ou o que “devo” receber face ao capital da “minha competência” (- isto é tão pomposo, que deve ser por isso que não sei usar essas armas). Em suma, sou um ingénuo.
Tenho a infelicidade de ser rápido no trabalho, tive o treino dos jornais e quando me entusiasmo imirjo nas coisas. Não digo que seja como o Dias Gomes, que escrevia uma peça de teatro em dois dias e depois telefonava aos amigos dramaturgos a perguntar quantos meses eles levavam para acabar uma peça para não parecer ao produtor que lhe havia encomendado um espectáculo que ele lhe estava a impingir algo que já tinha na gaveta, mas fico no meio-termo; e aí sigo a regra do Jean-Claude Carriére (o genial argumentista de Buñuel, para além de milhares de outras coisas notáveis como a adaptação do Mahâbhârata para o Peter Brook)  que, ciente do tempo que precisa para realizar uma encomenda, pede o dobro do tempo para assim alternar ócio e trabalho, sem se sentir sobre pressão.
Mas ainda assim sou demasiado rápido para o costume, em terras (lusas e moçambicanas) onde se pode levar de 5 a 8 anos para se fazer uma tese universitária e de 6 meses a 1 ano para fazer um guião de cinema. E o problema é que caio sempre na esparrela do bandido e acabo por só pedir o estrito para viver razoavelmente bem nesses meses e, como diria a minha mãe, não penso no futuro.
Ora aí está um mau exemplo – jovens candidatos a escritores e guionistas.
Vou-vos dar um exemplo. Imaginemos uma situação, para abertura de um filme. O cenário é Maputo, numa avenida em cujas traseiras fica encravado um bairro “clandestino” e problemático, associado ao comércio das drogas e ao roubo:
«A noiva puxa para cima o seu vestido branco para que não roce no chão de terra, e corre das artérias do bairro para a avenida de asfalto. Na mão tenta desesperadamente equilibrar um bolo de noiva.
Mete pela estrada de asfalto, na direcção da farmácia. O seu insólito aparecimento provoca pasmo no caminho, mas a noiva vai concentrada na conjugação da velocidade com o equilíbrio do bolo.  
Entra na farmácia, ofegante. Retomando o fôlego pede uma bomba de asma para a mãe. Perguntam-lhe porque veio com o bolo e responde que foi a mãe, que está sozinha e com um ataque de asma, que a incutiu a levá-lo para que o não roubassem. O noivo não atendia o telefone e ela teve de se decidir, antes que desse um badagaio na mãe.
Sai da farmácia em corrida, o bolo em esforçado equilíbrio na mão, e a meio ainda da estrada de asfalto, começa o aguaceiro – com bátegas que engrossam a olhos vistos.»
Isto é um começo de um filme forte, em qualquer parte do mundo, mas hoje sei que para o realizador terá muito mais valor se tiver custado 10 000 dólares do que se custar 500 dólares.
Se for vendida por 500 dólares o realizador quererá “melhorá-la”, se for por 10 000 dólares (aqui, nos EUA tratar-se-ia de um milhão), ele não admitirá sequer discutir e a sequência estará aureolada de um valor dramático astronómico.
A situação dramática em si vale o mesmo – tem a mesma força impactante, a diferença está nessa dimensão oculta: a relação simbólica com o dinheiro. Não a esqueçam, ela, misteriosamente, neste mundo canalha, onde o talento e o trabalho honesto não chegam, conta. E não façam “trabalhos para amigo”, o amigo vai rapidamente confundir a coisa e tomar o baixo preço por uma subalternização na relação. Por um vício mais comum do que pensamos e que sempre me surpreendeu: as pessoas vivem em competição.
Meu caro: o objectivo é ter a inteligência da gestão de Rubens e fazer-se pagar, sem piedade, e não a sofrida camaradagem que só dá equívocos e a modéstia dos cabritas da silva desta vida.

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