sábado, 26 de março de 2011

E, DE SÚBITO, É NOITE

carrà, os ginetes do apocalipse


Passou-me ao lado, mês e meio.
Penteava-me (esta mania de passar
o pente, depois me usar como Duchamp
dos ready-made), e, emboscada
atrás das rugas que me enrouquecem
a voz, assaltou-me a lembrança trun-
cada: esqueci-me em que dia
esqueci que fazia anos, a minha mãe.

Foi em Fevereiro, estava entretido
a ver flamingos pela janela,
a pensar no descaro duma aluna
que me faz palpitar a maçã de Adão,
talvez a ler Yeats; ou a aturar
uma birra da Jade, uma decalcomania
da avó, até na capacidade de alhear-se.

Passou-me totalmente, e hesito
mesmo na data, como se a memória
fosse um pecíolo muito agastado
e tão preocupado em não quebrar
que cedesse à sombra o desfrute
da polpa, já sem um rés de gente dentro.

É isto mãe, não nos educaste para a morte,
foi a tua grandeza e o desnorte que nos segou
com um gume mais frio que a menstruação
dos guindastes, pois as tuas filhas
também não me telefonaram –
três vértices que perderam, na soletração
do triângulo, a dimensão soberana.

Como livrar-me deste arrepio
se deixei acabar a água tónica
e  me penalizam os ecos deste silêncio
que em mim desatracou?
Lá dentro, a Luna toca violino
e a Jade exige a centésima leitura
do João Pé-de-Feijão. E eu estou
especado no meio do páramo
a arder que me chama,
no meio da brutalidade que
me mudou em calcário o coração.

Quem somos, neste desafecto
que nos rói até a medula
se quedar anestesiada
como a alma do leão tatuado?
Somos tão reles troca-tintas
que festivamente nem damos conta        
que de súbito, como dizia o outro,
ficou noite… sem termos ousado
devolver as estrelas mortas
aos ramos dos nossos astros vivos.

É isto: figurantes numa exposição
de ready-mades, com os fungos
a subirem pé-de-atleta acima.
Não há perdão, talvez
os nossos filhos nos esqueçam
também, e seja justamente tudo
a que possamos aspirar, desertos
de infinito, pó que há muito perdeu
o desejo de vassoura ou de urina.

26/03/2011



Um ciclo escrito, na morte da minha mãe, em 2006, e publicado em Piripiri Suite:


SEDA & FRUTOS
                                                          À minha mãe, que adorava ameixas

1
Desabalada ameixeira nos penhascos
da Seda: polpa da derradeira hora!
Que labirinto não se esquece,
no cerne macio? Um velho tanque:

película de água e limos.
A rã salta – schlaap!
Depois, Deus é quem sabe!

Do Japão ao Pragal,
assim pernoita a vida:
o alvo crisântemo
acorda a neve. E depois,

faz-se fundo ou a escarpa
sobe à boca e brilha –
radioso paul.


2
O mistério da Seda perfura
os dois olhos: golfo
onde a consciência amara,
- cuidado! -, na mesma lisura

que atraiu Exúpery. Em
a pele tocando a Seda, de imediato
se apercebe da sua intrínseca

felonia - carbúnculo esfriado.
Nem pesa, o lenço branco
aveluda o rosto: é sopro

de Deus cobrindo, no seu
fruto, o detrito. A falta
que faz um «a» à sede,
a tremenda mudez de «a»zul!


3
Vi, numa fábrica de Seda
em Benares, rostos
que pareciam pétalas
sem osso, mãos

estanhadas e símiles
aos panos que lustravam
as nossas, ásperas
e remotas. Julgo

que o mistério da Seda
é a imediata imersão
do tacto no nome de Deus -

alastra, como o leite no chá,
de uma vez. Lume
que faz da despesa radar.



4
Para a Seda não há
contratempos, respira
enovelada na água, defe-
nestrada no ar, nas goladas

de sangue, respira
nas cores que embrulham
os olhos em ligaduras.
A Seda é uma chama

fria que arranca
as mãos dos enganos.
Envolve os cabelos

como uma nova aurora
e lava nos olhos
os quistos da memória.


5
Atroz, a trepadeira
da dor. Escava
na fronte, desin-
forma as precauções.

Atroz, como o bico
da narceja que imprime
na carne da ameixa
certificado de qualidade.

Tudo se emula
quando a Seda
assenta o seu rosto

no látego, tique-
-taque em deslaçado
voo, centrípeto.


6
O que me assusta
é a distância: mas
s Seda dilui
as tesouras, cerzidura

do Um. Não finda,
a impressão da Seda
não finda – estira-se
como álcool secreto.

O telheiro dos fundos
é a minha infância,
o mundo desprovido

de simetria. Só
a Seda faz da partilha
em separado culminação.


 
7
É assim que vejo a chamada
da morte: uma Seda
alumia num átimo
as clarabóias interiores.

Ventilada por baixo
em plena prol, a ameixeira-
-brava descobre-se propensa,
e não amêijoa.

Menos um percalço
que um perdão: 
olhar projectado

numa extensão que
laqueia a dor. Selo
lambido por um cego.

                  

 

A CARTA PÓSTUMA


As notas acotovelam-se-lhe nos dedos
ou brotam convulsas, uma a uma,
como pálpebras que se viram para fora.
Não há pianista igual ao Monk, mãe,
poeta de mais rútila afasia. Fora-me emprestado
o cd há 15 minutos e lia as notas de produção
deste Criss-Cross, gizado em cinco sessões,
no distante ano em que eu afeiçoava carpo,
falanginha e falangeta ao meu primeiro avião
de lata, quando a Maria João me telefonou:
que te desvaneceras, sem sofrimento. Sem
sofrimento, como a retina ensimesmada
ao cimo do escadote, ou o escaravelho
que assenta o dorso no chão e teima em furar
com as patas a barriga dos cirros.
Cheguei a casa, depeniquei no caril
de amendoim, a cismar, e agora,
como contar à tua neta que não te tornará
a ganhar à batalha naval? Ela abordou-me,
apreensiva: sabias que o Monstro (o da Bela)
é analfabeto? As partidas que se pregam
aos Monstros! Uma oportunidade perdida
para falar-lhe da iliteracia com que as palavras vãs
nos soldam à morte? Uma pontada refugiou-me
no escritório, sonâmbulo, os olhos despenhados
nos hibiscos brancos e vermelhos que polvilham
os quintais dos bairro universitário.
O Thelonius Monk – vês, até o nome é singular –
começou a premir as teclas na sua forma paródica
de desmantelar o sentimento de uma flor
(há gente assim, que prefere desenrolar
um mapa de piratas ao descasque da emoção).
Depois telefonou a Bélinha, que me confiou:
após a operação, sobre um corpo mirrado
como a colmeia que encarquilha ao fogo,
içava-se um rosto, o olhar, o verbo lúcidos.
Era tudo o que ansiava saber e desatámos
aos soluços, como o ataque do piano
na melodia de Tea for Two.



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