marina, carra |
Interessar-me-ia muito conhecer uma pessoa que tenha calado toda a vida – mas gostaria de conhecê-la no momento em que começa a falar.
Debalde carambola o uísque nas paredes do estômago. De balde e esfregona a ebriedade reclama decantação - toujours en retard.
Valéry, “a obra dura na medida em que é capaz de parecer outra diferente da que o autor fez”
Os retratados de Leonardo têm uma indubitável valor de presença - é como um fiapo de carne entre os dentes, não despega, por mais que a língua escarafunche.
Projectos para 2011: ir a Portugal visitar as minhas filhas e o neto, que pôs panda a vela; ir ao Pico visitar o combate do Carlos com a solidão e a algodoada serenidade de Sara; ir ao Brasil, serviço e afirmação, atravessando a vau o livro dos mortos; não faltar em Veneza ao festival de sombras chinesas. Tudo isto depende do Brodski, me confiar em sonhos, o desenho de um projecto que faça chover as lecas. Já comprei a mesa pé-de- galo.
O coração de tijoleira vermelha estava enlameado por séculos de maus-tratos.
A civilização é o processo pelo qual se reduz o infinito ao finito, escreveu Justice Holmes. Sim, só que na poesia o trânsito pode ser invertido: cf. a vertigem do estudo de Aquiles em Homero.
É de imortalidade que se morre no câncer, meu amor, quando a célula se esquece de morrer e persiste clonando-se com o clamor dos esporos ao rufo do colibri; é de imortalidade que se morre, meu amor, se o cativo de ti fica indiviso e se lhe chega a febre dos fenos.
Gosto de ver o movimento das ventoinhas no espelho do fundo, quatro, que ventilam a sala de sete metros de profundidade por seis. No outro pólo, dispõe-se um balcão em meia-lua que tem por fundo um mostruário de garrafas de vinho verde de má qualidade e de pacotes de sangria. Quando pergunto, têm vinho branco fresco gelado ou sangria fresca, espantam-se. É a sexta vez na semana que como frango de churrasco, desta vez embebido em coco – do mal o menos. Remoo a carne branca fixando-me no reflexo das ventoinhas e sonhando com javali, esse porco que anda de mota. Saudades de ser javali.
Quatro televisões de canal aberto, duas dedicam-se ao comércio com Deus. O último milagre (há cinco minutos, para daqui a quatro minutos anuncia-se outro) foi assim:
O pastor tonitruante espalma a manápula na cabeçorra do ceguinho e profere:
- Há dez anos que não enxergava. E agora? – pergunta ao milagrado.
Voz mortiça do cego:
- ‘Tá bom!
O pastor repisa:
- Há dez anos que não enxergava, não é fácil. E agora?
Voz ainda mais mortiça (descrente?) do afortunado:
- ‘Tá bom!
Conclui o pastor:
- Sejam livres, os paralíticos podem andar, em nome de Jesus!
Sem apelação, a faca canta de galo no pescoço da galinha.
Jantar na embaixada: É tudo tão polido que só as esquinas da mesa falam, enquanto os joelhos restituem o silêncio às mãos. O riso tem a medida das colheres de óleo de fígado de bacalhau da minha infância, quando os mosquitos à noite eram tenores. Boa a sobremesa: soube a pouco.
“Como é que é pá, tudo jóia? Continuas à prova de felicidade?”
Tenho os cadernos cheios de tralha, de cenas escritas para cinema e televisão, coisas que nunca se chegarão a fazer ou serão trucidadas pela perícia do realizador. Como salvar dez por cento deste material? Imagino as estátuas a gretar no sentido dos veios, para voltarem a ser pedra.
“O folar da Páscoa é foleiro, mas tu não sabes o que é estar longe…” - ouvi na padaria.
Segundo Valentim, Jesus comia e bebia mas não defecava – não existia nele qualquer podridão. Cegueira do gnóstico: só vejo vantagens na defecação de Jesus, estrume com alto valor calórico para a terra, como as pegadas do jovem Maomé no deserto, das quais despontavam um manto de ervas.
Aí está um negócio: prever o futuro através das estrias das barrigas das grávidas.
“Existir é um plágio!”, Cioran. Eis o exemplo de uma frase-efeito. No melhor pano cai a nódoa. Ensaiemos uma frase-efeito:, “O bom ciclista ouve os pássaros, o bom motocard só ouve o motor: a técnica repele o cosmos”.
A Teresa acabou uma pequena novela que a torturava há anos. Leio-a preguiçosamente na cama, mordiscando a torrada. De repente dou conta que enchi de pingos de manteiga o lençol. Daqui a dez minutos, quando ela entrar ansiosa no quarto para me perguntar então, saberei o que lhe importa mais.
«Só dos mortos os vivos nascem», escreve Platão no Fedon, e não creio que me seja pacífico aceitar tal legado. Platão reforça com uma citação de Anaximandro a sua tese, “nenhuma coisa pode nascer senão do seu contrário”, mas nem o peso da autoridade evocada me consola. Na verdade, nada disto nem à época era novo, umas léguas a Oriente já o Taoísmo há muito formulara o mesmo com menos aparato. Mas que dizer face a esta árvore de mortos (olá mãe, olá pai, olá grande besta…) que encimo como um fruto descabelado e pouco grato? E por que teimo eu em achar, apesar dos exemplos que a vida me traz, que o vivo nasce do vivo e que nem todos os brotos da primavera estavam contabilizados.
Dá-me cem gramas de Platão mal passado?
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