segunda-feira, 14 de março de 2011

DESGHOST(O) WRITER

bruno taveira


Estar doente faz-me faltar a uma reunião na TVM onde iria ser discutida com o suposto patrocinador a série de treze episódios de ficção que escrevi para a televisão oficial de Moçambique, já vai para um ano e meio.
Até aqui a TVM não conseguiu reunir o capital necessário para avançar com a produção da série. Inclusive em Novembro último gizei-lhes um plano de acção para a televisão pública liderar uma grande campanha que levasse a uma espécie de “pacto nacional” para a criação de um fundo para o audiovisual moçambicano. Não se avançou um passo. Como é costume, apenas se desbaratam energias.
Esta reunião com os responsáveis de uma ONG americana pode ser uma derradeira oportunidade. A mim é que não me apetece agradar a clientes e fazer qualquer cedência criativa, que é o que certamente me iria ser pedido.
A série estruturalmente está firme: tem sempre três minutos intensos de abertura em cada episódio, uma estória desenvolvida por episódio, suspense e ganchos, personagens, algum humor e situações que entrelaçam um tema (a Sida e o perigo dos relacionamentos múltiplos), dum modo transversal, por várias gerações e classes sociais. E são enredos urbanos, a que quis dar o nome de Piripiri Sweet.
Eu declino, não irei discutir a troca de uma só palavra com pessoas bem-intencionadas mas que não cultivam a língua, ou se uma expressão está menos carregada de “moçambicanidade”, ou se o povo (essa magnânime e abstracta entidade) entende ou não entende o que se diz, como se a linguagem corporal, o pano de fundo das situações dramáticas, o fio das relações entre personagens não existisse e as palavras não brotassem de um contexto. Ou como se esse tão sublime público fosse de todo idiota e estivesse proibido de aprender e de alargar o seu léxico. A gripe veio-me a calhar.
Recebi uma encomenda e cumpri-a o melhor que sabia, respeitando os termos de referência, agora que os especialistas da comunicação para a saúde façam o que entenderem.
Aqui deixo uma cena que me divertiu escrever e que é o grande detonador do primeiro episódio, quando o protagonista (um homem a rondar os cinquenta, técnico numa ONG) descobre que a sua jovem amante está grávida, o que o deixa a braços com um enorme sarilho (- ele é casado e tem dois filhos na faculdade).
    

CENA 11. RESTAURANTE DA FEIRA POPULAR. INT/NOITE

O empregado mete-lhe os pratos à frente, o dele é peixe grelhado. Neusa tem um vestido branco com uma barra prateada no decote em bico e uma insígnia de “sargento”, também em prata, num dos ombros.

NEUSA
Sei o que gostas numa mulher, mas não sei o que tu gostas no peixe.

JÚLIO
Como é?

NEUSA
Se gostas de cabeça, por exemplo. Há homens que são doidos por cabeça de peixe.

JÚLIO
E isso preocupa-te.

NEUSA
Todos os meandros da intimidade me interessam.

JÚLIO
Todos os meandros? Às vezes gostava de saber quem te ensinou português…

NEUSA
Está errado?

JÚLIO
Não está errado… é o que me intriga…

NEUSA
É a nossa língua oficial…

JÚLIO
Não é vulgar que alguém com a tua origem fale em meandros.

NEUSA
Os meandros é como os miúdos da galinha. Quem conhece os miúdos da galinha conhece todos os meandros… e eu nem gosto de falar em meandros, prefiro tocá-los…

JÚLIO
És espantosa…

NEUSA
Miss Micaia*, era a minha alcunha… quando era uma moluene**.

JÚLIO (ri-se com gosto)
Foste feita para me encantar.

NEUSA
Não é? Pedimos outra de vinho?

JÚLIO
Mau. Sempre que pedes mais vinho, a seguir vem bomba.

NEUSA (cantarola)
Sempre que te vejo/ o coração pisa uma mina/e não há como esquecer/ que fui seixo na tua boca/ fio de sangue na tua sina… (a música arranca com ela, ela aponta para o ar) É a nossa música… Hoje fazemos seis meses de estar juntos… E tenho um presente para ti…

JÚLIO (ele sustém o garfo, dá conta da sua gafe, poisa o garfo no prato sem o levar à boca, culpando-se)
Olha… eu esqueci-me meu amor…

NEUSA
Homens… (mete uma garfada na boca) mas tenho que chegue para os dois…

JÚLIO
Alguma coisa de que vou gostar…

NEUSA
Vai-te regalar, my darling, vai-te regalar…

JÚLIO
Dás-me já?

NEUSA
No fim da garrafa… primeiro dou-te um beijo (beija-o), e outro (beija-o de novo, depois serve-o de vinho) bebe, bebe que te faz bem… (maliciosa) ficas mais aguerrido

JÚLIO
Ah, E eu a pensar que era ao contrário…

NEUSA (ao ouvido dele)
Enganaram-te…

Elipse. Garrafa vazia.

JÚLIO (acabando de limpar a boca com o guardanapo, ansioso)
Bom, solta lá a bomba.

NEUSA mete-lhe o teste de gravidez sobre a mesa.

JÚLIO (procurando desvalorizar, meio gago)
Aqui só diz que estás grávida…

NEUSA
Não é? (Ele mantém-se embatucado) É teu.

JÚLIO (lívido, apontando o teste)
Isso não está aqui…

A câmara vai fechando sobre ela:

NEUSA (impassível, levando a mão dele, ao seu ventre)
Pois não, está aqui.

GP da mão dela sobre o vestido branco.
GP dele embaraçado, a câmara abre à medida que ele sobe um braço e pede para o empregado, atrás:

JÚLIO
Traz-me um Famoso*** duplo, e uma água tónica…

NEUSA
… não te estiques, que hoje temos de passar pelo “get together” em casa da minha tia Yola… Foi ela que nos apresentou e não lhe vamos fazer esta desfeita…

JÚLIO
É só um… para desanuviar… talvez dois…

NEUSA
Pois e três é já a Trindade… e com isso não se brinca!


*um arbusto espinhoso
**uma miúda da rua
***modo local de pedir um Famous Grouse

Sem comentários:

Enviar um comentário