quarta-feira, 30 de março de 2011

PORTUGAL DOS PEQUENINOS/ a indignidade tuga

daumier, le ventre législatif

O 25 de Abril de 1974, que libertou Portugal de 40 anos de Salazarismo, ficará na História como o dia em que os tanques saíram dos quartéis para irem tomar os Ministérios, e, ao descerem a via magna que é a Avenida da Liberdade em Lisboa, paravam nos semáforos. Foi uma Revolução em que os tanques paravam nos semáforos.
Nada define tanto os portugueses como esta oscilação, ou antes esta dupla injunção de carácter: o medo à autoridade foi-lhes de tal forma inculcado que mesmo no curso de uma revolução se respeita escrupulosamente a lei. O extraordinário filme de Susana Sousa Dias, Natureza Morta, mostra o júbilo profundo com que as massas ignaras se empanturravam quando eram visitadas por Salazar ou pelo cardeal Cerejeira: vê-se no lampejo dos olhos, na adesão de cada poro, o fascismo confortava-lhes em festas e ritos a irrelevância quotidiana, o sentirem-se um «zero à esquerda»; era um carnaval investido de beatice, e onde cada cidade competia com o seu santo.
No dia 26 de Abril já ninguém era fascista, só os Pides (os esbirros da polícia política de Salazar), e mesmo esses foram rapidamente perdoados. Quarenta anos a serem malhados pelos torcionários da Pide deram aos portugueses “a visão” de que eles não passavam de “rapazes desviados”, a merecerem redenção. E por isso, na generalidade, nem sequer foram julgados. Os que fugiram, na maior parte para o Brasil, não tardaram a regressar e a encontrar acolhimento, como empresários ou especialistas da segurança.
O dia 25 de Abril deu-me de imediato uma lição. Os soldados desciam do Cristo-Rei onde haviam ocupado uma posição chave no sitiar de Lisboa e passavam pelo largo onde eu tinha nascido e a população se amontoava. Era um largo eminentemente popular porque havia nele um mercado e ali se concentrava todo o comércio. Eu tinha 15 anos e queria beber tudo o que se estava a passar, desde que a minha mãe entrara no quarto e me acordara para anunciar, “houve uma revolução, caiu o fascismo…”. Eu compreendia vagamente que isso significava que não iria ser chamado para a Guerra Colonial, o que seria bom, e queria perceber o resto. Cada vez que passava um contingente de soldados no largo era um corrupio, com o povo a enaltecer os “libertadores”, num cruzamento de palavras de ordem que empolgava os soldados, que se desdobravam em mini-comícios. E de repente alguém grita, dêem chouriços, dêem fruta aos nossos libertadores. E todos os comerciantes se prodigalizaram de braços ao alto com o paio ou o pepino. E no meio deste reboliço, outra voz grita, é um fascista, o Dias é um fascista, quer oferecer aos soldados chouriços de segunda.
O açougeiro Dias era o pai duma amiga minha do judo, dois anos mais velha que eu, com quem eu no meu íntimo já pecara em intenções e em omissões mas que me mantinha carinhosamente no meu lugar de “fedelho” mais novo. Contudo, no mês anterior ela convidara-me para a festa de anos, na cave do talho (o açougueiro) do pai, um privilégio que eu pagara com o gesto involuntário de lhe oferecer uma caneca azul-mosca com a ponte sobre o Tejo estampada a dourado (nunca perdoei à minha mãe ter-me forçado a tal presente e não me ter dado o dinheiro para eu lhe comprar um long-play), e isso criara um laço novo entre nós; ou seja, o Dias e a família mereciam-me estima e, instintivamente, corri para a porta do talho para fazer dique contra a vaga de revolucionários perigosos que dela se aproximava. Seguiu-se uma meia-hora de grande tensão com o Dias a jurar que dera aos soldados “os melhores enchidos do país” e a melga duma varina a incitar a mole humana a um linchamento sem perdão.
Os próprios soldados apaziguaram os ânimos, garantindo que era preciso perdoar “ao inimigo”. Daí que o Dias não se tenha livrado de três meses de ostracismo, com a loja às moscas (do qual se libertou ao inscrever-se no Partido Comunista), mesmo que entretanto se tenha sabido que a varina que tudo conduzira tinha na loja uma dívida monstruosa.
A observação deste episódio e o posterior esclarecimento das suas motivações ocultas introduziu no espírito do adolescente que eu era uma vontade de inquirição que nunca mais me permitiria o alinhamento ou a militância cegas. Tirei as devidas consequências daquele acto.
Ora, um dos problemas do país, soberbamente psicanalizado por Eduardo Lourenço e José Gil, é que nunca tira as devidas consequências dos seus actos. O José Gil chamou a essa malsã característica dos portugueses a falta de inscrição. E por isso em Portugal tudo é espuma, aparência, e os grandes infractores gozam duma impunidade vitalícia enquanto se escolhem os pequenos infractores como bodes expiatórios. É o que hoje se passa com a perseguição descabelada da raia miúda que não pagou os impostos porque não tem, enquanto os tubarões continuam impunes – uma das indignidades do “socialismo” de Sócrates.
A falta de inscrição não é de agora. Descortina-se na facilidade com que Portugal passou de um “país pardo/mulato”, onde metade da população era fruto da miscigenação (os visitantes de Lisboa do século XVIII espantavam-se que na Europa houvesse um país com tantos pardos por centímetro quadrado) para o “branqueamento” que o regime de Salazar imprimiu à sua História, reprimindo e repatriando para as colónias os mais escuros. E esses movimentos forçados de massas tiveram sempre lugar na mais vil sujeição.
Outro ignóbil exemplo de sujeição encontramo-lo no episódio de opereta bufa que levava os ministros de Marcelo Caetano, depois de Salazar ter caído da cadeira e ficado definitivamente xexé, a durante dois anos (até à morte do ex-ditador) reunirem com o ditador uma vez por semana para ele continuar a pensar que ainda manobrava os cordelinhos do poder. A ágape cristã reduzida à sua caricatura mais excruciante.
Trinta e cinco anos depois do 25 de Abril, a Assembleia da República aceitou a inecessidade de se comemorar no Parlamento a data que consagrou o regime democrático. A razão que se aponta é, à data, o parlamento estar dissolvido. Eles não querem interromper a folga.
Eis um país a braços com uma falência que não é só técnica para ser também, a partir deste momento, e sobretudo, simbólica. É um país sem projecto e que denega o seu passado mais vivo. Porque a grande diferença do 25 de Abril sobre todas as outras datas que a constituição consagra é que as outras âncoras simbólicas da identidade portuguesa nos remetem para um passado mais ou menos mítico enquanto o 25 de Abril devolveu o país ao presente, e esta dimensão é a única que não deve ser descurada no porvir duma comunidade. Por isso esta é a única data que importa.
Esta súbita «dessimbolização» do 25 de Abril é uma coisa gravíssima que indica que os partidos com acento neste parlamento já se julgam acima dos símbolos que os legitimaram, como a canalha de qualquer polícia-política se julga acima de qualquer lei. E mostra – a tramada «longa duração» do Braudel revela como tudo se torna naquilo que é - que o 25 de Abril não passou de um momentâneo assamento das virilhas.
Eu, por mim, meus caros, que nunca fui dado à melancolia e ao fado (chateia-me de morte tal estilo musical), acho que um país que já só tem poetas é uma aberração social sujeito ao triunfo da corrupção e ao retorno do fascismo mais ronceiro, que se alimenta da aviltação dos corações.
A sugestão do Saramago é a única que me parece boa neste momento: votem em branco.

2 comentários:

  1. bom post, apesar de ter de acreditar que alguma coisa se tem de fazer, pelo menos ler um post destes e parar para pensar neste País e como dar a volta a tal fado

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  2. hum ... estava eu a deliciar-me com os enchidos do Dias e as (imaginárias) formas da Dias quando me vens com essa das tatuagens do Gil. "Fascista, tu" a dares os enchidos de segunda aos teus leitores ...

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