segunda-feira, 14 de março de 2011

ÉSQUILO; A TARTARUGA E EU

auto-retrato de gustave daumier

É inexorável: a vidinha que nos desfolha dia a dia reserva-nos incontáveis números de circo, um circo ameno, mais de pulgas que de leões, mas iniludivelmente encantador.
Hoje, rebentado, os pulmões em ponto cruz por acção de duas agulhas de uma expectoração sem freio, baixei ao leito. Tosse que tosse, um flato aqui e acolá, a voz arranhada, rouca.
Olho aborrecido para os livros das cabeceiras da cama e não sei que ler. Hesito, hesito, e descubro que há um livro caído atrás da mesa-de-cabeceira – aos meses que ali estará a avaliar pela moldura do pó. É um volume encadernado com três peças de Ésquilo. Sinto que é mesmo o que me faltava, que a gripe me incumbiu de ler estas três peças traduzidas pela Natália Correia, sinónimo de uma língua pronunciada correctamente. Lá fora ouço o vento em galanteio aos jacarandás, a incitá-los ao striptease, etc., etc.
Acomodo-me nas almofadas e peço o quarto cházinho do dia. Catarro & siga. E abro o livro. Tem uma nota biobliográfica de duas páginas, ao fim da qual se lê: «Parte destas peças teria sido representado na Grécia, e parte na Sicília, para onde Ésquilo se dirigira, após o sucesso da Orestíada, e onde acabara por falecer, em 456 a. C., segunda a lenda, devido à pancada sofrida na cabeça pela queda de uma tartaruga que certa águia elevara nos ares e deixara tombar do alto».
Há horas que leio obsessivamente o mesmo trecho (incapaz de avançar um parágrafo) e que tento calcular a velocidade do vento que estaria nesse dia, o tamanho da tartaruga, se o Ésquilo era calvo, se o Jimmy Hendrix soçobraria de igual modo a um acidente do mesmo tipo, a idade da águia para ceder assim ao esbracejar do anfíbio, que tipo de bebida daria uma tartaruga destilada, etc., num escorrer imparável que já encheu metade dum caderno.
A ventoinha no texto observa-me desconfiada e o supositório assobia-me da gaveta, esperançado que me decida a apadrinhá-lo. Debato-me contra a corrente bravia das enxaquecas - remo e remo, alvoroçado: onde raio se enfiou a tartaruga que me estava destinada? 

  

1 comentário:

  1. As melhoras... A sua sorte é que já percebi que escreve tão bem doente como saudável, portanto até me ofereço para consultas online se preciso for. Por este post quase que pensaria que estes rasgos de génio só podiam ser fruto de uma qualquer febre que lhe acometia o corpo...

    (um) beijo de mulata

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