sábado, 19 de março de 2011

DONA PERÍCOPE E O CINEMA

ghost writer, de roman polanski
para a Lourdes Sendas
Prometi voltar a escrever sobre o cinema, depois de um jejum de cinco anos. A compra acidental de um filme na rua deu-me o pretexto.
É uma figura da retórica. Chama-se perícope e é muito utilizada entre os predicadores. Consiste em pegar numa breve passagem da Bíblia e em reconstruir a partir daí, por encadeamente lógico e uso de analogias oportunas, todo o fundamento da fé cristã. É um jogo de propulsão fractal, do micro ao macrocosmos, numa caça ao padrão que re-liga.
Mas o que é espantoso é que este método pode servir também para a arte.
Comprei o dvd de Ghost Writer do Roman Polanski. Uma amiga pintora tinha-me descrito um plano que a fascinara nesse filme.
Não dura mais que três segundos, não é sequer bem um plano mas uma marcação de cena num plano-sequência, e até se repete na mesma sequência. Só uma pintora podia ser sensível à força irradiante dessa(s) imagem(ns), que contêm afinal a chave do filme.
Adam, o controverso ex-primeiro ministro britânico, recebe no seu escritório o novo «ghost writer», com quem afinará a escrita da sua biografia, depois da misteriosa morte do seu primeiro colaborador.
Na parede da sala abre-se uma enorme janela que se recorta contra uma paisagem arenosa que no horizonte se confunde com a cortina do céu, absolutamente plúmbea. E é contra esse enorme vidro que o político em queda, Adam, de fato de treino colorido, de costas para o espectador, se apoia de braços abertos acima da cabeça, num breve momento: é um rasgão no céu, suspenso no ar. A imagem ressalta do encadeamento da acção, lateja, poderosa – ganha autonomia.
A segunda vez que Adam volta à janela e que nela se apoia, um minuto depois, na mesma cena, arqueia mais o tronco e os braços e a imagem sugere já a de um corpo em queda, que perfura as nuvens. E então aí ilumina-se o arquétipo: é Ícaro em queda, depois de chamuscado no poder do sol, clara metáfora política.
Quem vir o filme com atenção será assaltado pela nitidez dessa imagem arquetípica de Ícaro e percebe imediatamente que aquele homem não sobreviverá à sua história, nem quem orbita na sua imediação, como sua sombra (o ghost writer). O núcleo do filme, a sua metáfora expansiva, está aí.
O resto, para quem detém a chave do símbolo, não passa do seu desenlace natural.
Revejam os meus caros amigos o filme, e leiam-no neste perspectiva. Depois experimentem aplicar a “perícope”, a outros filmes. A Táxi Driver, por exemplo.

2 comentários:

  1. pensei que tinha enviado um coment. obrigada pela lembrança! não fosse a imagem e não seria capaz de recordar o filme!
    acho graça porque ligo o q escreveste com o teu post anterior: livros "roubados" e com a importância que alguns livros têm para nós num determinado momento. foi o caso do "estruturas antropológicas do imaginário"!

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