domingo, 27 de março de 2011

A DESGRAÇA DE NÃO ME CHAMAR MIMOSO

chagall
O meu gato tem orelhas de morcego, que viram com os vagares, a parcimónia, dos radares.
Não faço ideia se existe uma “gatidade”, uma partitura que leve os gatos a comportarem-se de modo similar ou se cada um age e se reinventa consoante o lar onde se locomove.
O meu, que não é arisco (ao contrário do que imaginava para os gatos) é muito aéreo, tende a equilibrar-se na travessa dos cadeirões para se estirar, todos os músculos em floração longitudinal, na direcção das janelas, ou multiplica as piruetas pela casa, como Nijinski, não sei se, na esteira do bailarino, para demorar-se um pouco lá em cima, ou se na mira de insecto.
Certo é ser bastante orelhudo, suspeito que as orelhas já lhe são adultas enquanto no resto ainda é maneirinho.
Tem-se mostrado, o Sebastião (eu só admitiria um gato cá em casa se ele tivesse o nome de reis que se perderam no nevoeiro), útil trincador de baratas. E, sendo leal, avisa sempre batendo os dentes, no som que fazem os élitros de um grilo muito rouco.
Ora, o Sebastião vive num estado sobressaltado de zooms – o que indica que o que é visível para ele não tem nada a ver com o que me é dado, e me motiva a contar-vos algo sobre os gatos, algo que normalmente não se sabe.
Ou antes, primeiro preciso de explicar o que me fazia detestar os gatos e sentenciar: “só acho admissível gostar e não ser correspondido por uma pessoa, daí que prefira cães a gatos, esses imperiosos ferros de engomar da ternura dos donos…”.
Também ajudou terem-me contado em miúdo que em Espanha havia uma aldeia mineira onde os gatos respondiam todos a nomes de profetas bíblicos. Mas segundo este mesmo informante a saliva daqueles gatos portava uma enzima que provocava o envelhecimento prematuro dos seus donos.
E o essencial é isto: em plena ressaca de 75 apaixonei-me pela filha de um empresário fabril e, tacticamente, só para lhe mostrar como estava, com ela, contra o pai e a favor da autogestão da fábrica de família, carreguei durante oito meses sanitas, bacias e bidés. Que táctica! Que argúcia! Contudo, era o que produzia a fábrica e o que pedia o amor.
À noite alancava o gato ao colo (ela não saía sem o seu Mimoso, a quem só faltava turbante), enquanto ela fingia flirtar comigo. Claro que me traiu com o sindicalista de serviço – os dezanove anos dela foram um figo para a lábia dos trinta dele, ademais habilidoso nos jogos malabares, enquanto os meus dezassete anos vegetavam num medieval amor cortês temperado (imagine-se a salada) de Holderlin e Rosa do Luxemburgo – e, depois de ter feito um casamento fulminante, a fábrica voltou quase de imediato aos moldes da gestão “capitalista”.
Encontrei-os recentemente, na minha ida a Portugal, à entrada da igreja, ele a carregar um neto do Mimoso (uma réplica mas já com turbante, juro). Falaram-me da maldita greve que nesse momento enfrentavam. É impressionante como um modesto e recatado o gato pode ser o ponto de uma farsa, comentei eu com os meus botões.
Por outro lado, um dos maiores sustos da minha vida apanhei-o quando julguei detectar num cão de rua os olhos do meu pai, falecido há dois anos atrás. O seu olhar de súplica - de uma profunda, cavilosa, e eterna dúvida.
Sem desfalecimento, tentei chutar o animal, numa agressividade crescente, e ele misteriosamente, sem desfalecimento ou o mais leve rosnar de resposta, seguiu-me durante mais de três horas. Eis uma inquietação que nunca se instalará com um gato e as suas frestas alienígenas.
Agora, já posso contar o que normalmente as pessoas não sabem sobre os gatos: são os campeões do sonho. Segundo o Michel Jouvet, um cientista que há 40 anos investiga o sonho e o sono, o gato doméstico sonha por dia o dobro do tempo que é permitido ao homem: 200 minutos contra 100 minutos.
Sinto-me duplamente humilhado. Sonha mais porque nos sonha, nós somos os sonâmbulos que operam o que os gatos engendram na sua psique diabólica. Isto que vos escrevo foi-me ditado pelo Sebastião, que se pretende anunciar ao mundo.
A imensa desgraça de não me chamar Mimoso, para poder enfim alucinar o sindicalista e desfrutar do leito da minha amada.

PS- tentei repetidamente colocar aqui uma gravura magnífica do Luís Manuel Gaspar de um gato muito misterioso, que tinha roubado do blog dele (que merece uma visita, aqui) , mas o programa ou o Sebastião não me deixaram editar a imagem. Tentei e tentei e tentei e a imagem ficou invisível. Acabei por achar esta que me parece ser bastante explícita em relação à ambivalência dos gatos.
O segundo gato, que saía de uma concha de caracol, também não se deixou editar.
Se o terceiro gato, de Chagall, que tem um rosto humano, também não se deixar editar, desisto e não alo mais de gatos. Os gajos não brincam em serviço 

4 comentários:

  1. Já não sei quem foi que me levou até si - suspeito que tenha sido o josé pimentel teixeira (ele é que se assina com letra minúscula) no seu ma-schamba, mas não juro. Só sei que nunca mais larguei o link.

    Muito obrigada por nos deliciar deste modo!

    (um) beijo de mulata

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  2. o jpt é um bandido porque só me impinge "más companhias"

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  3. Lamentamos, mas daqui já não arredamos pé!

    Escreva sobre o que lhe aprouver, que a si tanto lhe fica bem a prosa, como a poesia, como outra coisa qualquer, que não sou uma mulher culta, portanto só suspeito que talvez exista algo para além disto... A mim chega-me. E enche-me as medidas!

    (um) beijo de mulata

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