quarta-feira, 1 de junho de 2011

VESPAS SOBRE AS ALMAS SENSÍVEIS


Por necessidade, escrevi uma nova história infantil, que cruza os destinos tristes do Livro Que não Sabia Ler (inconsolado livro sempre à míngua de leitor) com o de Frederico, um miúdo pobre que quer ajudar os pais na horta, na machamba, mas que cada vez que lavra a terra e aí planta as sementes - batatas, couves, nabos, cenouras -, naquele canteiro, dois meses depois, só repontam sonhos.
Eu, que tenho publicados dois livros de ficção em que navego nos territórios da infância e adolescência, tenho sempre um enorme pudor em escrever coisas neste género porque há demasiados maus livros magnificamente ilustrados.
O que só indica que, a) é um mercado exponencial onde todos os habilidosos pensam mamar, b) a facilidade com que as pessoas desonestamente escrevem qualquer coisa para enganar a falta de juízo crítico de crianças e pais e as imposturas do género. Por isso só me atiro a ele quando tem mesmo de ser e com uma má-fé de reserva.
Quando tem de ser significa: conjugar-se uma necessidade interior de cristalizar uma história que nos foi habitando e submergindo com a oportunidade de a publicar.
As baboseiras que por todo o lado se escrevem para as crianças, menorizando-lhes a inteligência e reduzindo-as a macacos incapacitados de adquirir a totalidade do arco-íris da linguagem e da expressão, são arrepiantes.
Quando era miúdo escasseava o género infanto-juvenil, a rapaziada tinha que se atirar ao Dickens e ao Júlio Verne e de frequentar o dicionário, uma floresta de insuspeitadas fosforescências.
Hoje como os próprios autores acham chique não irem ao dicionário alargar o seu léxico de 500 palavras impôs-se a convenção de que a literatura para crianças tem de ser uma arte de afásicos dirigida à mente esburacada da iliteracia.  
Bardamerda. A melhor literatura para crianças é a que se torna relacional: a que envolve a criança, um familiar, e um desconhecido que ela tem de cruzar como se fosse um oceano. Adquirir o léxico equivale a sermos dotados de remos para o ímpeto da travessia.
Convido-vos a relerem o Principezinho ou os livros infantis da Sophia de Mello Breyner. Tem todas as palavras nos sítios, não falta o sinónimo mais rico na ocasião mais expressiva. O que exige pai e mãe no acto da leitura, e o seu empenhamento. Mas neste triângulo, pai/mãe, filho, livro/palavra é que o imaginário nasce. A criança adquire o hábito da leitura por transferência da relação com os pais para os livros, e não por encantação mágica das letras.
Todas as letras são mortas sem o afecto: eis o segredo para a formação de leitores, ó avantesmas da pedagogia!
O que é absolutamente imbecil é querer escrever livros com um vocabulário redutor e dirigido a crianças que não sabem ler. Nunca percebi esta equação: a preocupação com uma linguagem acessível para a criança que para pegar no livro necessita da mediação do adulto. Ou toma-se o adulto por incapacitado para traduzir para a criança o que esta não entende?
Suspeito que esta imposição do mercado nasce da puerilização crescente dos responsáveis editoriais, gente com o mesmo grama cerebral do produtor de Hollywood, que depois de ver uma adaptação do Ricardo III, exclamou arreliado, «este filme está cheio de citações!»
O pai que, contra as balelas de que há uma idade própria, conseguir que desde cedo os seus filhos leiam Shakespeare é um pai realmente comprometido com a edução dos seus filhos; os filhos que aos oito, nove anos se comovam com o Romeu e Julieta e façam da sua riqueza vocabular uma festa (teatral) têm o futuro, a imaginação e uma saúde mental assegurados. Porque o importante não é as crianças compreenderem tudo mas perceberem que há coisas maravilhosas para aprender e que isso lhes alarga a esfera do âmbito relacional. É preciso habituarmo-nos a não ver claro para sermos arpoados pela curiosidade e instigados à dúvida sobre os nossos limites. Como dizem os chineses: uma coisa que já entendi é algo pela qual já não me interesso.
Uma dos actos mais educacionais que presenciei foi um pai, de comum complacente, a responder a um filho que requeria uma explicação para o pai lhe negar uma saída à noite com os amigos:
- Digo-te que não, porque também é um atributo de ser pai o arbítrio.
Acho que delegámos demais as funções da educação nas leis do mercado, que só atende aos seus interesses e não ao que faz crescer em cada um o que pode germinar.
A palavra só arboriza quando é vivida por dentro e não por fora, e por dentro está cheia de noites, abismos, labirintos e alçapões. Quem não entender que uma palavra pode desdobrar-se em tantos níveis emocionais como os dos jogos da Laura Croft não entendeu nada: soltem-se vespas sobre essa alma sensível.
  


3 comentários:

  1. António,concordo plenamente com você.Infelizmente as crianças e os adolescentes têm sido regados com uma água cheia de impurezas que não lhes mostra a importância vital da literatura clássica sobre suas vidas.não digo a clássica somente como a clássica,mas a clássica de qualidade,que faça eles realmente crescerem com "uma alma sensível",como você mesmo,belamente,colocou.Eu gostaria muito de ler a história do seu Frederico,onde posso conseguí-la?
    Abraços

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  2. vou levar este post para o blog da nssa escola, posso?. está tudo dito! e muito bem dito.

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  3. jenny, se me enviar o seu mail terei todo o prazer em enviar-lhe a hist'oria.

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