Julian Beever, o chão de Paris |
Ontem ao fim do dia visitou-me o Tavares Belarmino, um jovem amigo de 21 anos que vinha de Paris, embriagado com a cidade, onde passou duas semanas, como ele dizia, atordoadoras. Trouxe-me um diálogo do Alain Badiou, filósofo e escritor, sobre o amor, Éloge de l’amour (Champ/Essais, Flammarion), que aconselho a todo a gente para quem o amor seja mais que o simples hedonismo. Um livro belíssimo. Hoje, recebo um email da Susana Gonçalves, que está em Paris e para quem o reencontro com a cidade não está a ser feliz, para além do diálogo com um inesperado tuaregue. Eu, que só tenho de Paris uma experiência atordoadora (como a do Tavares) aqui deixo o único conto que escrevi com a Cidade das Luzes em fundo. Pertence ao meu livro, Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo, Teorema, 2008. Vai dedicado aos dois.
Naquele Inverno as árvores eram só pescoço. Era o que guardava da terra: troncos com finos pescoços implumes. Olmos, se a lotaria dos nomes permite uma hipótese. Tudo tão diferente do jardim das Tulherias, onde, agora, a campânula das castanheiras-da-Índia a protegia dos aguaceiros.
O Amadeu trabalhava em Paris num café com um nome pomposo, Le Petit Coin de L'Opera, disseram-lhe, e, farta de se sentir em salmoura, conseguiu que um emigrante de passagem fosse portador do seu apelo. Há dois anos que nada sabia do noivo mas no íntimo a sua promessa abrasava, irrevogável.
Pôs-se um pimento quando um mês depois o carteiro lhe depositou uma carta nas mãos. A prima é que lha leu. O Amadeu marcava-lhe encontro na «vue panoramique» da Samaritaine. A 15 de Maio, faltava um mês. Ele não enviava a morada mas não cismou. Em Paris as árvores teriam mais do que pescoço, anteviu, e aos trinta e cinco não há tempo para indecisões.
O senhor de boné de bombazina e cachimbo, da banca de livros, fitou fixamente a carta que amarrotava na mão. Ela pronunciou como pôde a palavra Samaritaine e ele apontou a haste do cachimbo em duas ou três direcções. Felizmente não estava longe e chegou meia-hora antes do encontro.
Lá em cima, a vista aparvalhava. Sentia-se uma rola na palma de um trovão que, a espaços, rugia ao longe. Deus já não habitava nas poldras: a grande cidade espreguiçava-se à sua frente, ardendo-lhe nas narinas. Pena o granizo que caiu de súbito, a roupa colada ao corpo, o atraso de Amadeu.
Só dois dias depois encontrou o Le Petit Coin de L'Ópera, na «Rue de Charenton». Uma tasca atamancada e suja, de balcão de mármore roído e a tresandar a ranço e vinho. Ao fim de uma hora de inarticulada lamúria compreendeu: do Amadeu nem o borboto.
Voltou à Samaritaine. Dessa vez concentrou-se na Basílica do Sacré Coeur: a sua vida manava dali, misteriosamente. Quatro horas depois olhava a escadaria íngreme. Já não tinha dinheiro para o elevador. Subiu-a hipnótica. Não ia à cata de nenhum Cristo de ouro, mas foi junto à estátua de tantas promessas que uma mão treinada a quis espoliar. Deu conta no último momento e com uma lima que guardava no bolso do casaco fez um lenho na mão do ladrão. Antes de desmaiar.
Um pergaminho, o rosto da Senhora que, ao acordar, lhe oferecia um chá. Esplendia uma bondade irrecusável. Quem a teria levado, desmaiada, para aquela casa?
A Senhora já tivera empregadas portuguesas (soube mais tarde que se oferecera ao padre para a levar quando viram pelo BI que era portuguesa) e sabia as palavras suficientes para a entender - rapidamente decidiu ampará-la. Era a mãe de um político.
Começou por fazer pequenos serviços enquanto ruminava os ossos miúdos de uma língua afanosamente estrangeira.
Das janelas da casa, mesmo ao lado da basílica - à cunha num dos vértices da colina - Paris desenrolava-se como um deslumbrante tapete de arabescos. Ali, só destoava a torre de Montparnasse; nunca se habituou àquele mono.
A Senhora tinha bom fundo e incitou-a a aprender a ler e a escrever. E para a motivar tomou a iniciativa de lhe comprar uma gramática portuguesa, um dicionário português-francês e um caderno de exercícios, oferecendo-se para a acompanhar nos estudos. Faziam duas horas de exercícios semanais, prazenteiramente interrompidas por momentos de mímica e gaguejadas confidências ou pela impertinência da velha cozinheira corsa, a quem enciumava a intimidade da nova com a patroa.
Marisa afeiçoou-se à sua patroa septuagenária, um ser talhado para a nobreza como o cobre para a luz.
Seis meses depois, num domingo, saía do metro e calhou chocar com o emigrante. Ele não a reconheceu, ela voltou atrás e seguiu-o. O homem apanhou a linha 4 e à saída enfiou-se pelo «marché aux puces» de Clignancourt. Marisa, que nunca lá tinha ido, apanhou-se a contar as malhas na pele de um jaguar e perdeu-o de vista.
Voltou a encontrá-lo no mês seguinte. Ele esperava alguém junto à entrada da Ópera, na Bastilha, e ela passeava o Balthasar, o coolie da Senhora. Esta nunca lhe dava horas de entrada nem perguntava por onde andara e Marisa acostumou-se a apanhar o Metro e a conhecer Paris aos palmos. Nos primeiros tempos voltara ao Samaritaine, agora preferia deambular pelos recantos da cidade. Era ele. Dessa vez não hesitou.
O homem primeiro começou por esquivar-se, não tinha ideia, depois, embaraçado, pediu-lhe desculpa de ter forjado a carta. "Nunca imaginei que se pusesse a caminho. Nem sequer conhecia nenhum Amadeu...". Marisa lembrou-se de quando as árvores ficavam num fio e o vento persistia no açoite, semanas.
Ele deu-lhe um cartão, tinha uma padaria, se ela alguma vez precisasse. Deixou que o Balthasar lhe ladrasse.
As palavras escritas mentem ainda mais que as que saem pela boca, pensou, e emaranhou-se ali na decisão de ficar analfabeta e muda.
Só falava quando era preciso para não ser malcriada. A patroa fez uma pausa no rendilhado com que fazia durar um croissant e perguntou-lhe uma derradeira vez porque decidira parar de aprender. Depois aceitou.
Já que não fala, pode ser que venha a cantar, disse-lhe a patroa, que lhe emprestou um casaquinho com estola e a levou à ópera. Para lhe fazer companhia. Conhecera o marido no intervalo de uma estreia do «Nabuco» e tornou-se um ritual na sua vida não falhar uma reposição da ópera. Pelo caminho contou o enredo a Marisa, que se alheava. A ópera fazia-lhe lembrar o Petit Coin de L´Opera e o nome da peça um dos pratos que mais servia no restaurante português onde tinha trabalhado: osso buco.
Era tudo um pouco demais, as talhas, os candelabros, os tapetes vermelhos no chão, os espelhos onde se descobria atarantada, uma cereja num pão de ló. No intervalo atravessou aqueles corredores a olhar os pés, os seus dois trambolhos metidos nuns sapatos de vidro, à vergonha expostos. Voltou ao lugar, atrás da Senhora, e quando a música recomeçou salvou-a de enlouquecer o zunido de um insecto, junto à cabeça. Veio-lhe uma imagem: o primeiro balcão do teatro incrustado no abdómen de uma mosca. Esforçou-se para não rir.
Cinco anos num «passe-vite», brincava mais tarde Marisa, aludindo a esta fase da sua vida.
Com coisas boas. Na sua terra o silêncio granítico das casas apoderava-se do ânimo, latejava nas têmporas. Em Paris não, antes das pedras sentia-se o elo entre as pessoas e essa vibração transmitia-se às casas, aligeirava-lhes o peso, parecia música suspensa, até nas estátuas. Apesar de serem edifícios incomparavelmente maiores aos da sua infância.
Ali nevava mais, mas não tiritava de frio porque, costumava dizer à Senhora, "o frio vela connosco, não somos o morto!".
Um domingo, disse-lhe a Senhora sorrindo: «Marisa, sabe que hoje são as eleições europeias. Na sua terra também. Já que na juventude não pôde votar, agora depois de velha devia aproveitar os votos todos!». Aquilo doeu-lhe. Não o voto, o modo ameno e trocista com que a patroa lhe lembrou que haviam passado cinco anos e que entrava solitária na casa dos quarenta.
Telefonou a uma porteira conhecida e foi com ela votar num Clube Recreativo em Strasbourg/Saint Denis. Aí, a porteira mostrou-lhe um cartaz que anunciava um baile no sábado seguinte e insistiu na companhia dela.
Acedeu. Achou graça ao conjunto, formado por acordeão e bateria, lembrava-lhe os da terra, mas, como de costume só falou o necessário para não parecer mal educada.
Um transmontano de hálito avinhado não se intimidou com o seu silêncio e toda a noite lhe pisou os pés, num arremedo de dança. No fim, teimou em levá-la a casa, obrigou-a a atravessar Saint Denis e quis forçá-la a entrar com ele numa sex-shop. Valeu-lhe de novo a lima. O lenho foi quase no mesmo sítio. A amiga porteira é que deixou de lhe falar.
Voltou aos seus passeios solitários. Habituou-se a ir para o jardim do Luxemburgo ou para as Tulherias. Às tardes. Soltava o cão e sentava-se a escutar o martelar manso dos vocábulos. Aos poucos foi achando o francês uma língua de vislumbres. Não foi fácil. De início enfrentou um muro opaco, de tijolo, depois um muro de buxo com buracos, onde, palavra a palavra, a sua compreensão ia respirando; ao fim de quatro anos comunicava, entendia tudo na televisão e o muro era uma azinhaga forrada de amoras, ainda que aqui e ali despontassem arbustos e bagas de que desconhecia a designação, o sabor e uso.
Mas era impagável o prazer de ir sentar-se à beira de um dos lagos hexagonais das Tulherias, abrindo os ouvidos ao jorro descontínuo das conversas. Tudo a maravilhava: uma nova particularidade da língua, as energias que as palavras são capazes de desencadear, e, porque não, as histórias divertidas e rocambolescas que a vida, instante a instante, desata. Habituou-se a ser um vulto quase invisível no mundo, descobria prazer nisso: muda como a pedra que escuta.
Lembrava-se que no Inverno anterior àquilo ter acontecido apanhou o gosto de se plantar à janela durante os nevões, a ver o manto branco a cobrir paulatinamente os telhados e terraços de Paris: a cidade era um gigantesco tabuleiro de damas.
Lembrava-se porque para a senhora, de repente, esse «tempo fatídico» punha-a triste e lembrava-lhe o Sudário. Maria sabia que as verdadeiras razões residiam na discussão que ouvira atrás de uma porta, entre mãe e filho; nas palavras duras que ela lhe dirigira: «és um político mais sujo, mais corrupto, que o lamaçal que fica depois de nevar!".
A neve, para a Senhora, só realçava as tristes pisadas do filho, e caiu doente. O que obrigou Marisa a permanecer em casa, a espreitar pela janela os brilhos e a geometria da neve nos telhados de Paris, enquanto uma melancolia viscosa e negra orlava o coração da patroa.
Dois passos à sua frente o ar queimava. Foi a arrastar-se, a superstição a destapar todos os medos antigos, que nesse dia chegou às Tulherias, vinda da praça Concorde. A doença da Senhora convertera-se no seu pesadelo: via-a nitidamente estendida à sua frente como uma toalha para uma mesa de dez pessoas. Que fazer se ela morresse, a quem recorrer? A morte eminente da Senhora - salvo seja - lançava-a de novo numa encruzilhada.
Passou à frente da estátua que representa o Nilo, de Lorenzo Ottoné, e deteve-se pela milionésima vez a medir a proporção e o sentido das figuras: a do rio, majestosamente reclinada, e a das insignificantes crianças decapitadas, uma sobre o seu ombro e as outras duas sentadas aos pés - para além do mistério da única criança com cabeça montar um crocodilo.
Já sabia há algum tempo que as crianças representavam os afluentes e por isso não precisavam de cabeça, mas Marisa empreendera que o escultor não as fizera assim.
Sentou-se à beira do lago e mergulhou os pés na água, tépida. Estava-se nos fins de Abril e a semana fizera despontar um extemporâneo calor de Verão. Não havia uma cadeira vazia ao redor do lago, um homem calvo adormecera com a cabeça caída para trás, no gozo do sol clemente. No lado oposto do lago, um grupo de espanhóis cantava sevilhanas.
Naquele dia pareciam-lhe mais pequenos os esguichos de água que saíam dos vértices do octógono, naquele dia a vida afigurava-se-lhe mais triste e comezinha e Marisa revia-se na pouca sorte daquelas crianças decapitadas: com os pés no rio da vida não acediam à condição de poderem exprimir a sua alegria.
Um pardal que exibia uma côdea de pão no bico passou afoito por debaixo das suas pernas. À saída do túnel, outro pardal fez-lhe uma tangente e roubou-lhe a provisão, indo aterrar no rebordo, três metros depois. Mal teve tempo de lhe tomar o gosto, dois pombos ameaçadores obrigaram-no a largar a presa. A côdea ficou sobre a pedra do rebordo porque um terceiro pombo meteu-se na disputa. Aproveitou o primeiro pardal que num voo raso fisgou a côdea, rumando ao cimo das árvores.
A cena animou quase todos os presentes naquela área e ao seu lado uma jovem mulher de 23, 24 anos largou uma gargalhada, contra o ar sisudo do seu companheiro. Quando começaram a falar deu conta que eram portugueses. O diálogo estarreceu-a:
Olha que já devemos estar indexados no Guiness... - queixava-se ele.
Porquê?
Que machadada na auréola romântica desta cidade!
Mau...
Sério. Devemos ser o único casal que vem de férias a Paris e não dá uma para amostra. A nossa primeira vez em Paris e nada...
Outra vez a mesma conversa!
Uma semana... e nada. Só se pedia uma rapidinha, nos lavabos do Museu do Homem... uma trancadinha para amostra...
Que romântico!
Que queres? É uma força de expressão justa, se se fala em urgência.
A urgência do amor! Que pomposo. Já te expliquei, nas condições em que estamos não me sinto à vontade. Numa casa tão pequena, a dormir numa assoalhada sem porta que dá directamente para a cozinha e a casa-de-banha, e com elas a dormir no quarto ao lado, desculpa, mas não me sinto à vontade...
Antes irmos para um hotel. Ao menos uma tarde.
E o dinheiro? Comprasses menos livros. E com tantas coisas para ver, querias perder uma tarde...
Perder uma tarde? Vês? Já me estou a ouvir dizer ao conselheiro matrimonial: "senhor doutor, já nem Paris nos inspira!".
Mas não se partilham outras coisas, além do sexo? Eu amo-te e estamos juntos. Não é o mais importante?
É, mas falta a prova parisiense.
A prova?
É como comprar uma cartola e nunca tirar o coelho. E o trágico é que tão cedo não vamos poder cá voltar...
A prova...não caibo em mim.
Algo inesquecível, único, que nos faça acreditar toda a vida. Olha, imagina que te despias agora e te metias água dentro, a fazer o perímetro do lago, enquanto eu me punha em cima da cadeira e bradava aos céus, "é a Vénus, nasceu a Vénus das Tulherias, é a mulher que eu amo, a Vénus, a Vénus das Tulherias nasceu deste amor que lhe tenho, a mulher mais bela do mundo..."
Brincas!
Sério. Uma loucura. Ao menos tínhamos algo para recordar.
E então aconteceu. Para espanto de Marisa, ela tirou a mochila das costas, e em três gestos sacudidos despiu a t-shirt, os calções e as cuecas.
E nua, mais nua que muitas feridas, entrou no lago. Ele estava fulminado pelo efeito das suas palavras: a namorada percorria o lago, recebia palmas, piropos ou assobios, enquanto agulhas e linhas lhe selavam a boca. Quatro, cinco minutos, num passo lento, no passo de quem espera ser ungida, o que centuplicava o silêncio dele e lhe revolvia nas tripas o fátuo carvão das promessas. Quando ela se reaproximou, caía uma lágrima na sua face e ele, não suportando mais o vexame, fugiu.
A mulher vestiu-se calmamente, sob o clamor dos curiosos que entretanto se tinham aproximado, e Marisa, ainda atónita por se ter sentido mais emocionada do que escandalizada, deixou fugir:
A menina é muito bonita.
Ela respondeu-lhe sem levantar a cabeça:
É um infame, um cobarde infame.
Pôs a mochila às costas e preparava-se para seguir quando Marisa notou que ele tinha esquecido um livro. Pegou nele e estendeu-lho:
Olhe o livro do seu... namorado.
Fique com ele. Fui eu que lhe ofereci. Ele nunca o mereceu.
Nesse dia entrou mais tarde em casa. Atravessara a cidade a pé, movida pelo assombro. A coragem daquela rapariga, a confiança com que se dispusera às palavras dele, sem que no fim, apesar da desilusão, a sua beleza, a sua inteireza, a sua nudez saíssem chamuscadas. Pelo caminho, abriu repetidamente o livro, eram versos, via pelo recorte que eram versos, e esforçou o entendimento sem conseguir articular mais do que quatro ou cinco palavras de obscuro sentido. O título parecia ter colher e boca e mais cismada ficou, que tinha a poesia a ver com os talheres? Havia de conseguir ler o que a rapariga captara naquele livro para não ficar interdita – e tremia de pensar que a sua vida acordava de novo alcateias, depois de tantos anos de uma transparência estática, vazia.
O livro tinha uma dedicatória: “Para o António Valdemar, com a promessa de amor da Clara”, e um endereço, soube depois, para a eventualidade de ser perdido.
Contou tudo à Senhora que a encorajou a estudar. A Senhora ainda tentou decifrar com ela uma ou duas estrofes mas a sua ténue energia já quebrava como palha seca. Nessa noite Marisa levou um licor para a cama e fixou sem desfalecer as letras, uma a uma: pastora de vogais.
Inscreveu-se num curso para adultos que dava, em complemento, uma formação profissionalizante. Uma outra amiga porteira é que lhe havia trazido os papéis. Pensava no fim do curso abrir uma pequena pastelaria. O professor não coube em si de pasmado quando ela confeccionou uns bolos corsos. Tinha mão.
Ao fim de quatro meses já lia o jornal com fluência, sem os tropeções que dantes a faziam desanimar. E experimentou ler de fio a pavio o livro de poesia. Com susto, como nos salmos. Dois meses depois ainda estava atordoada. Não imaginava que se pudesse escrever assim, que as palavras acendessem fogueiras na neve. Sentia-se tão pronta para aquele significado novo das palavras que soube que tinha de regressar a Portugal. Já não tinha medo de não compreender tudo o que uma língua nos diz.
Mas era-lhe impossível partir de imediato. A sua gratidão para com a Senhora não lho permitia, naquele estado.
Com a sua proverbial generosidade a Senhora facilitou: morreu 15 dias depois, viam as duas um programa sobre astrologia. Pediu a Marisa que lhe apertasse a almofada e depois de a ter aconchegado, quando Marisa se sentou, reparou que a cabeça da senhora pendia. A surpresa é que deixara a Marisa e à velha cozinheira corsa um pé-de-meia, o suficiente para um pequeno negócio na terra.
A carta para o Amadeu - tinham-lhe dito entretanto que ele vivia em Barcelona e estava viúvo e desta vez haviam-lhe dado a morada - é que estava a meio. Não sabia se a acabaria, começara a sair com um senhor, o Béjart, que andava no mesmo curso, mas nos escritórios. Já tinham ido numa excursão à Bretanha. Pensava nisso ao almoço e ficara tão aérea que deixou salpicar a camisa. À tarde, na aula, a professora chamou-a ao quadro. Aguentou a mão enquanto pode, até que a professora, se meteu com ela: "a Marisa está a guardar algum segredo?". Baixou a mão e as nódoas, três - uma delas parecia um pássaro -, assomaram. A Arminda, que era a mais velha e estava na primeira fila com uma camisola listada que lhe dava um ar de gaiata não aguentou, "ó Marisa, e canta?".
Escreva o que quiser, sugeriu a professora. E Marisa pegou no giz e redigiu: «Naquele tempo as árvores eram só pescoço». Riram todas muito, embora Marisa insistisse em que era verdade.
Era ali naquela rua: perto do castelo de S. Jorge. Depois havia de aproveitar para espreitar Lisboa lá de cima, nunca o tinha feito. Subiu ao 2º, era o esquerdo. Bateu à porta. Ouviu lá dentro, uma voz feminina, “abres a porta, estou a trocar-lhe a fralda”. Havia uma criança, pensou, e sorriu, estranhamente aliviada. O homem abriu a porta. Era o mesmo.
Sr. António?
Sim, faz favor.
Sorriu, entregando-lhe o volume de «A Colher na Boca»*:
Venho-lhe devolver este livro. E agradecer. Tenho a certeza que o senhor merece uma segunda oportunidade.
*segundo livro de poesia de Herberto Helder
Tão lindo...e tão urgente...antes que chegue o inverno, as árvores se desnudem, os amantes se desencontrem...e suas vidas fiquem que é só pescoço...!
ResponderEliminarBeijos!