quarta-feira, 15 de junho de 2011

A GRANDE ONDA

de Hokusai, para ser lida ao som de Vox Balanae, de George Crumb
                                                                                                   
                                              para o Rui Lopes Graça e o João Lucas


1

Incrustada em deus
como a bainha da sombra no meu passo
                                    ou a canoa
na água que a deflagra.

O espelho deserta da tua face,
                             palpa
no declive d’água
a agoniada extensão da luz.

Rema, o teu braço é o veio
movente do teu corpo -
                                       a porta
de que só deus tem a chave.

Livra-te de que ele a abra!
                                Rema!


2

Que tumulto me atou
veia a veia
                  ao bordejar do Índico?
Suspenso pelos ganchos da transparência
        que me vincam na carne
               os amiúdes passos em falso,
remo.

Há quem cante,      que alívio
saber que há quem           
resgate da cinza
                          o cisne.

Rema! Rema!
Segue a luz que s´enrola
                 para dentro: talvez a onda
         volte à nascente,
pelo âmago da corrente,
aí onde o ouro
desemboca do fundo.


3

Há flautas na água?
Claro que há flautas na água!
E ouvem-se as gaivotas,
               mungidas
pela lembrança dos roseirais.

Mas quem selou o sonho,
                 um lugar
     que anilhou nos pés
     a onda      perfurada de visões?

É ainda ele, no tanto que perdeu?

Não percas o ritmo!
Dança,
             sentado no banco,
deixa que as tuas pernas paralelas pulsem
e convirjam no esquecimento
      da onda:
                    vê e apressa-te,
o que sobe desce,
no oco da flauta já ressoa a timbila,
dança com o teu remo veloz!

Isso, contagia a luz!


4

Incinera-se dentro de ti
                   a onda,
         é já um toro de madeira
exposto ao ígneo vendaval
                  da memória.

Rema,
antes que se esvaia,
o teu ponto de ancoragem:
só no seu desenho
        se esvanece
a férrea moldura do presente:

do modo febril que a árvore
perscruta na mínima fímbria
de ar
          sinal da ave,
                                  ausente.
rema e rema, dança e rema.

Isso, contagia a lua!

3 comentários:

  1. Alucinante!
    Incinerar por dentro é um achado poético e tanto.
    Adorei :)

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  2. Essa grande onda tragou-me... ao som de Vox Balanae, de George Crumb, contagia a alma!
    Belíssimo! Bjs

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  3. contagiar a luz. Palavras ousadas que caem como água sobre pedra, ramificando-se em gotas. mais do que palavras, movimento. belo poema.

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