LÍVIDA NEVE
Sim, o pavor faz-me revirar os ossos
que chiam gemebundos como as lágrimas
de cão que limpam as ramelas à lívida
neve, que nunca exagera.
O SEGREDO
Adejava de terra em terra
sobrevoando as linhas restritivas, lagos
e lameiros, em busca do segredo
que o liquefazia numa árvore.
O QUE SOBRA À PORTA
Eis a porta que se abre para dentro
de si mesmo, contundida, à cata
de orifícios que a aliviem de estar tão absorvida
pelas sensações que lhe deixaram a batente.
TATUAGEM
Corria atrás do vento
para lhe tatuar no dorso a toutinegra.
corria atrás do vento, escorreita
e nervosamente prismática.
COM GANAS
Já o passado exibia ao ombro
a minha pele esfolada
e daí, se não se importam,
com ganas me escapuli pró presente.
O BETUME
O betume impermeabiliza.
O nome não. O vento também não.
Há três dias que os pássaros comentam isso:
algo impermeabiliza o que não sabem designar.
DA INVISIBILIDADE
Lá se haviam estabelecido beduínos.
A bem dizer, lá continuam a brotar os beduínos,
ainda que ninguém o saiba. Perguntei à miúda
que me serve a cerveja - nem cerejas nem beduínos.
PULSAM
Quando a fenda se rasga no horizonte
a dança compõe a aridez da paisagem
e as tuas pernas, expansivas,
numa fímbria de saliva, pulsam.
DELAGOA BAY
Não há surfistas em Delagoa Bay. E, nela, rara-
mente mudam as copas dos coqueiros em hélices
destemperadas, como oráculos no vento.
Por isso se calaram os tambores.
O BEIJO-DE-MULATA
à dita
Reincidente, floresceu o beijo-de-mulata,
naquele canteiro. É um milagre, numa terra
que continuamente se revolve, mais presta
à erosão que uma fieira de cometas.
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