sábado, 4 de junho de 2011

A MOSCA E O SANGUE DO LEÃO


Há um grande poeta sul-africano Breyten Breytenbach, branco, que esteve 8 anos preso nas celas do apartheid, por duríssimas declarações contra o regime e, pasmemos, por estar casado com uma indiana ( - shari em que também caí). É desta irracionalidade que ainda padecemos hoje, nesta terra incandescente onde todos os diademas são de sangue, basta sair à rua para perceber como na cidade africana coexistem mundos sem se fundirem, estanques, intangíveis, numa inominada desautorização reiterada. O próprio Breytenbach escolheu o caminho do exílio e hoje vive em França, donde em 2008, contra as unanimidades escreveu ao Mandela, de quem foi amigo, uma carta, por altura dos 90 anos deste, a interpelá-lo e a interrogar: «esta violência fratricida e ignara, esta corrupção, este desprezo ignominioso pela vida humana e os valores, este dernorte sem saída, é tudo o que conseguimos fazer de África? Celebramos então o quê?».
Reli-o esta noite. É um poeta assombroso. A partir dum verso seu escrevi o que vai em baixo, pensando-o como a abertura duma tragédia shakespeareana que nunca escreverei, com Lady Macbeth e Shaka zulu nos principais papéis. É como segue:  


«A mosca não pode aterrar no sangue do leão,
escreveu breyten breytenbach,  nome de granito
onde ecoam uns sincopados cascos de cavalo 

mas o que interessa é a renúncia do insecto,
a renúncia de quem escolhe a equidistância,
e como eu se abstém de afogar-se

nas encordoadas veias de Deus. Toda a vida
desejei que me fosse anunciado: “Eis
o que chega da floresta!”, apontando aquele

que de si mesmo se perdeu e recolhe
por sob a língua os braseiros da ausência
e a culminação do mais escarpado Nome,

e foi-me, nesta espera, dessorando a pobreza.
E, se ouvia zunir aprestados os vampiros,
julgava-me protegido como a sentinela

a quem só a manhã quebra os ossos.
Assim me habituei aos rumores ocultos
da noite como a árvore aos veios que a impelem.

Mas agora impõe-se-me um direito de nada
mais aguardar, e de desposar a acção,
não a que sob a embriaguez e a macieira levou Will

a decorar com o seu punhal em carne viva o relicário
de Anne Hathaway, mas a que mesmo de esguelha
perdura na memória dos homens em letras exaltadas.

Sinto amiúde que me falha ter exercido qualquer
actividade venatória, como ter sido caçador furtivo
ou guardião do segredo de um crime de grande porte,

e de xisto é o meu coração carecido, mas espero
que o arpão da imaginação abra a porta duma taberna
onde se possa ser mais que borrachão e espirituoso

e o mal e o bem entrancem nos dedos o tabaco e o cuspo
chegue à língua, desalterado na amargosa limpidez  
que me ocupa quando dobo o mar em espuma branca.»
   


1 comentário:

  1. Texto fantástico! Lamento, enquanto leitor teu, pedir-te que trabalhes ainda mais (como se já não bastasse com o que já nos tens presenteado por cá), mas essa tragédia deve também ser escrita, e urgentemente.
    Abraços

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