quinta-feira, 30 de junho de 2011

QUEM CALA A RAPOSA E O GRILO?

Na minha adolescência vi um filme interessante que ao tempo me atraiu porque a banda sonora era dos Pink Floyd. Chamava-se «La Vallée» e a sua trama desenvolvia-se em torno de um tema sempre actual: será possível esquecer o conhecimento? É possível, na esteira de Nietzsche, dar um salto para lá da lei, da gramática, dos secretos ditames que pelos ardis da linguagem expressam ou impõem a sujeição que deve ficar secreta?
Se me recordo, um grupo de aventureiros motivados pelo impulso muito rousseauniano de se desligar da civilização chegava a um vale perdido numa imensa floresta onde vivia uma tribo ainda virgem de contacto. Face a esse novo limiar rejubilavam com a possibilidade de um recomeço. Só que paulatinamente não apenas os eventos que se sucediam à presença deles se emaranhavam em equívocos preceitos, que iam desvirtuando a “inocência” da comunidade “primitiva”, como progressivamente eles se davam conta de estarem irreparavelmente ancorados nos pré-conceitos de homens educados nas balizas simbólicas da sua cultura de origem.
Um dos motores da modernidade artística constituiu o que Paz baptizou como a «tradição de ruptura», i.é., cada movimento pretendia fazer tábua rasa de tudo o que havia para trás e começar de novo, de forma inaugural. Mas será possível fugir ao contágio do adquirido, e à influência do nosso tempo?
O poeta inglês Ted Hughes foi um caçador entusiasmado, inclemente, até aos seus catorze, quinze anos. Depois, como refere, «a minha vida tornou-se mais complicada e a minha atitude para com os animais mudou. Acusei-me então a mim próprio importunar as suas vidas. Comecei a olhá-los, por assim dizer, a partir do ponto de vista deles.»
Teremos de introduzir aqui uma nuance que o poema que citaremos em seguida autoriza. Em vez de uma simples empatia (o ponto de vista deles), esta conversão engendrou na verdade um terceiro ponto de vista, que foi quem detonou o poema: não é ele (o poeta), nem eles (os animais), mas a intersecção entre eles quem opera. Rejeitado o predomínio de um sobre o outro, não se trata de uma simbiose, mas de algo diferente dos dois e que emana do contacto e da interacção. Algo análogo ao devir-animal de Deleuze:
«Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimésis), mas é encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação, de maneira que já não nos podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: e que não são nem imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto mais singularizados numa população. Pode-se instaurar uma zona de vizinhança com qualquer coisa, com a condição de que se criem os meios literários para isso, como com o áster, segundo André Dhôtel. Entre os sexos, os gêneros ou os reinos, qualquer coisa passa. O devir é sempre “entre” ou “dentre”: mulher entre as mulheres, ou animal dentre outros animais. Mas o artigo indefinido não efectua a sua potência a não ser que o termo que ele faz devir seja, ele próprio, desapossado dos caracteres formais que fazem dizer o, a (“o animal que aqui está”). Quando Le Clézio devém-índio, é um índio inacabado esse, que não sabe “cultivar milho nem talhar uma piroga”: em vez de adquirir características formais, entra numa zona de vizinhança.»
O que se comprova no poema A Raposa-Pensamento:

Imagino a floresta neste preciso instante da meia-noite:
há mais qualquer coisa viva
para além da solidão do relógio
e desta página branca onde os meus dedos se movem,

através da janela não vejo nenhuma estrela:
vejo qualquer coisa mais perto
embora no interior da escuridão profunda
a entrar na solidão:

frio, delicado, como a neve escura,
o nariz da raposa toca ramos e folhas;
dois olhos servem o movimento já
a deixar, outra vez, outra, e outra,

nítidas pegadas na neve
entre as árvores, sombra manca
que as raízes do chão atrasam da silhueta
de um corpo arrojado por ousar passar

entre clareiras, um olho,
uma energia expansiva e intensa,
luminosamente, concentradamente
agindo na sua actividade própria

até que, de repente, com o seu cheiro penetrante e forte,
a raposa entra no orifício obscuro da cabeça.
Da janela ainda não se vêem estrelas; ouve-se um tiquetaque,
a página está impressa.
 
Desde o primeiro verso, somos situados no laboratório do demiurgo. E sentimos que a raposa está viva, que chega de fora para penetrar no «orifício obscuro da cabeça», onde devém-poema; experimentamos nas costas da mão a sua força expansiva, a delicada humidade do seu nariz; enxergamos o nítido recorte das suas pegadas na neve – tudo isso o poema nos transmite, de forma soberba. Mas não só, inclusive o poema envolve-nos na criação da raposa, por metonímia: «a página está impressa». O leitor participa no acto-de-linguagem que se-fez-mundo. Mundo não meu, ou teu, mas de vizinhança.
Este tipo de despontar mágico duma triangulação que acorda outro, assim como o universo de Ted Hughes, são ainda um eco de uma reminiscência romântica, contudo o modo como ele cumplicia o leitor e o leva a reconhecer a experiência do poema sinaliza uma inescapável marca do seu século.
Aparentemente nos antípodas, Alexandre O´Neill, mais próximo das safadezas de Dada que da propensão oracular de algum Surrealismo, fazia do riso uma arma com que desmontava as ilusões da teleologia poética. O seu é um riso que afirma, ou, antes, que desactiva pela afirmação uma energia reactiva, pelo que também não hesita em explorar todas as ambivalências, mesmo quando se articulam de forma desconstrutora.
Peguemos numa das suas facécias mais conhecidas:

O GRILO

O grilo
não só de ouvido
eu cri-qu´ria sabê-lo
não só de gaiola cati
vá-lo mas dáctilo
grafá-lo copiar
seu abc de pobre
 

o poema começa por ser “um achado tipográfico” que desenha meia gaiola – a outra metade desenha-o o leitor. Depois traslada a natureza para a linguagem pela metamorfose aliterante do vocábulo «grilo» em «grafá-lo». Segue-se que, no próprio coração do texto/gaiola, o poema em vez de falar da linguagem do grilo, encarna-a: cri-qu´ria.
Isto é, inclusive quando parece retirar à poesia a ganga romântica, dessublimando-a, o poema acaba por cumprir um dos desideratos românticos: nomear as coisas que se ama com a linguagem das coisas que se ama.
E temos, à vez, riso, experimentalismo, ludismo… mas também, a contrapêlo: celebração e elegia.
Só há uma forma de agirmos em vez de sermos agidos pela cultura que nos condiciona as virtualidades da deliberação:
é apoderarmo-nos o mais profundamente de todas as suas florações até que, pela comparação, possamos potenciar uma distância crítica; visto não haver quaisquer hipóteses de nos ser devolvida a idade da inocência, a subtracção agramatical.

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