quinta-feira, 2 de junho de 2011

O PINA, CAMONEADO À JOHN FORD


Estava em falta com a celebração do Prémio Camões para o Manuel António Pina. Não pelo Camões, mas pelo Manuel. Foi para mim uma surpresa enorme a decisão da atribuição deste prémio ao Manuel António Pina. Estou há seis anos fora de Portugal, não faço a menor ideia das flutuações actuais no xadrez [VAC1] da literatura portuguesa, e desconheço boa parte dos novos valores que despontaram bem como as correcções do deve e do haver no canteiro das margaridas.
O Pina sempre foi alheio a estes concursos. Tem um coração vadio a todas as tentativas para o circunscreverem, como os gatos que cultiva (julgo que em vasos), e foi sempre um homem de imaginação alheada de movimentos, modas e gerações, em serena contra-corrente. E ainda por cima tem humor, o sacana.
Jornalista e cronista, nunca precisou de se pôr em bicos de pés. E foi, avesso a vedetismos, publicando poesia e livros infantis como quem come caracóis, espetando condignamente o caracol um a um.
Bateu-lhe à porta. Não há como não abrir a porta a zarolho tão apetitoso.
Houve uma coisa que em tempos me confundia na poesia de Manuel António Pina e que hoje adoro: a sua capacidade para se colocar absolutamente de lado na divisão que faziam os românticos entre os intuitivos e os racionais. Eu era um romântico e apesar da ousadia dele em titular um livro, o seu primeiro livro, de 1974, como Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo Calma e Apenas um Pouco Tarde, eu desconfiava. Era parvo e fazia mal. Hoje sou um fã descabelado. Com o Pina estamos diante da festa da inteligência, que nem descura o jogo dos espelhos: havia de ser giro um almocinho de herozes entre o Pessoa, o Borges, e o Pina, enquanto o Kant, que empoava a cabeleira, observava.
Recordo dois momentos especiais com o Pina, precisamente um almoço com ele e o Helder (Moura Pereira) – acho, brutamontes como sempre, que comi rojões, enquanto o Helder e o Pina se aflautearam num peixinho grelhado -, em que ele me contou uma história oitocentista delirante de uma corveta ancorada no Douro com uma rebelião a bordo (recordo que recordo o transe mas desrecordo a estória); e uma viagem de comboio Lisboa-Porto em que papagueámos todo o tempo, ou antes, ele foi dando azo à sua veia de narrador e eu fui admirando o bicho.
É o que me faz ter a certeza de que agora, tendo ele o tempo que dá sempre a maçaroca, abandonará as traduções para cometer o romance. Não se tem tanto talento em vão.
Mas, como dizia, demorei nesta felicitação porque me faltava o livro.  Ainda não achei o que queria mas desembrulhei duma caixa o Cuidados Intensivos, e reparo agora que ele está autografado e endereçado a um Paulo (será o Paulo da Costa Domingos, com quem todos nos demos na altura?) e que o terei desviado do seu dono. Mas este desvio retroactivo permite-me agora transcrever 3 poemas:

NA BIBLIOTECA
O que não pode ser dito
guarda um silêncio
feito de primeiras palavras
diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,

quando já a incerteza
e o medo se consomem
em metros alexandrinos.
Na biblioteca, em cada livro,

em cada página sobre si
recolhida, às horas mortas em que
a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro,

as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.

Aí, onde não alcançam nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta. 


CUIDADOS INTENSIVOS
IX
“Apaga a luz. Guarda-me os óculos. Obrigado.
Como se chamava o homem da lavandaria,
o que trazia sempre a roupa trocada
e um dia trouxe uma camisa dele próprio
e a deixou ficar lá em casa mais de um mês
à espera que a mandássemos outra vez para lavar,
a ver se a recuperava?
(Ao fim de cinco semanas,
a mulher perdeu a paciência,
e veio por ele e pela camisa, que ainda
estava dentro do saco de plástico
no guarda-fatos; era igual à minha, azul,
talvez de um azul menos óbvio mas, de qualquer modo azul).
Lembrei-me dele porque
quando morreu tu disseste:
‘Coitado, pode ser que acerte
com o caminho do céu!’
Tinha uns óculos de lentes grossíssimas,
e não me admiraria que a sua morte
tivesse sido, mais que morte, um erro de paralaxe.
agora, sem óculos, como saberá ele
se está vivo ou está morto?”

O QUE DISSE S.
“O que vem de baixo
e o que vai o para baixo
estão parados;
É o vasto mundo
que dentro deles, e fora deles
desce para o alto
e sobe para o fundo”.





1 comentário:

  1. Agora sim, lido na íntegra o post. Uma menção ao poeta laureado lá no blog:

    http://thmari.blogspot.com/2011/06/manuel-antonio-pina.html

    Abraços cordiais do Rio de Janeiro!

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