Hoje no café, voltaram a perguntar-me, E Deus? É a pergunta que regularmente me fazem, neste país de palmeiras, mangas, mesquitas e igrejas baptistas. Andam num tu cá, tu lá permanente com Deus, apesar da desordem manifesta no campo social e duma miséria irredenta e vivida num verdadeiro espírito de Job.Eu só me lembro da história que P. Jacob cita no seu livro O Empirismo Lógico, e que conta o seguinte: «O físico Szilard anuncia um dia ao seu amigo Hans Bethe que decidiu escrever um diário:-Não tenho a intenção de o publicar; vou simplesmente catalogar os factos para que Deus seja informado.
- Tu não achas que Deus conhece os factos? – pergunta-lhe Bethe.- Sim, anui Szilard, mas ele não conhece esta versão dos factos!».
Um Deus assim é que me convinha. Aliás, na esteira duma certa tradição herética cristã para quem Deus não se conhece a si mesmo e se busca no fazer e na iluminação do homem. Como se tivesse sido tomado duma monumental amnésia e só em nós, as suas sinapses, despertasse fugazmente.
Mas quem vive em África só pode acreditar em Deus por falta de imaginação. A superstição, a idolatria, e a violência estão tão mescladas com a indigência, a sordidez e o egoísmo humano e social, que Deus me parece profundamente injusto, idiota ou surdo, posta a vanidade dos apelos amplamente repetidos por milhões de bocas. De outro modo, com tanta fé entranhada, porque havia de ser esta paisagem humana tão fustigada?
cristina rodero |
Todas as manhãs, no entreposto de chapas que existe quase à porta do meu prédio, vejo um paralítico andrajoso, sem carrinho de mão, que se arrasta sobre os braços e os joelhos, atirar-se do autocarro para a berma do passeio. Como se mergulhasse na piscina. Avalio o embate diário daquela carga de ossos na pedra. Nem sempre cai bem. No outro dia o seu joelho contundiu na esquina do lancil do passeio e gemeu durante uma hora. Depois vegeta pelas imediações, todo o dia, lançando olhares de misericórdia aos transeuntes para que lhe dêem esmola. É um quadro deprimente.
Perto, muito perto, fica a recém-inaugurada igreja da IURD, um edifício mastodôntico, com milhares e milhares de fiéis, que descem do chapa ali mesmo, a fim de irem ao culto. Nunca vi nem os fiéis ou quaisquer pastores da igreja se proporem levar aquele pobre diabo para o templo, para que ele fosse objecto dum desses milagres que passam todos dias na televisão e que ressuscitam o crocodilo numa montra de sapatos.
Passam por ele e não lhe tocam, não lhe deixam esmola, esgotados pelo dízimo, e não ousam imaginar – sob medo de não acontecer. Por que senão, o que os impede de aliviar o sofrimento deste homem? Que tremendo egoísmo os cega na busca de uma salvação privada, que não envolva o seu próximo? Cristo amou os leprosos, mas estes cristãos não, e ao contrário do que aparece nas televisões evangélicas, esta terra padece duma verdadeira carência de milagres. Dos autênticos.
À porta do Hospital Central, em Maputo, uma vítima de mina pessoal, sem pés, vende fita-cola. Não tem um sorriso beato na boca porque tinha o lábio fendido por um estilhaço que lhe rebentou também com os dentes. Ali perto também existem templos dessas igrejas novas onde campeiam os milagres a metro, mas nenhum desses fiéis imaginou sequer a possibilidade de que aquele homem gostaria de ser salvo, de ser preenchido pelo miolo da fé, exorcizado do diabo que planta machamba no corpo dele. Foi despejado pela igreja. Ninguém o leva ao conforto milagreiro ou o consola, tentando-o converter à sua confissão, se calhar com receio de que ele depois não seja assíduo no pagamento do dízimo.
À porta doutra igreja vi uma mulher a ser espancada pelo marido que dizia que ela estava penetrada pelo demónio e que se deitava com outros homens. O homem, rude, inarticulado, era claramente um idiota sem perdão, mas nenhum dos irmãos de fé ousou apartá-lo da mulher, porque aquele era “um assunto particular”, e como é sabido, a mulher foi amaldiçoada por Deus.
Creio que Sartre tinha razão quando defendia a necessidade dos homens começarem a ser responsáveis pelos seus actos, sem álibis ou entidades transcendentes que os alheiem de ser a verdadeira mola das suas escolhas.
Depois de cada um adquirir uma pauta de valores e de ser activo na responsabilidade social para consigo e os outros, se realmente sentir necessidade duma espiritualidade apegada a um rito ou a uma comunhão religiosa, why not?
Mas primeiro devíamos arrumar a casa. Enquanto tivermos o airbag de Deus pela frente e nas costas, suspeito que não cresceremos o bastante como pessoas para dedicarmos espontaneamente amor e respeito aos demais.
Raposão deixei-te um convite no meu blog
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