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Sob sugestão de várias famílas, para tirar teimas, fui ao nimas. A fita chegava com um carimbo de impostura: Barry Lindon. Saí de casa prevenido, acompanhado de leitura redentora: os Diários Secretos de Wittgenstein.
Em Alvalade, no 40, sentou-se ao meu lado uma velhota baixota - os pés pairavam-lhe a cinco centímetros do chão – de face empergaminhada mas estranhamente envolta em luz. Duzentos metros depois, laça-me num sorriso : «o sr. desculpe... mas, como o vejo a ler, pode ser que me saiba dizer o significado de um sonho...».
Conta: «Adormeci e ‘acordei’ num andor, vestida de Nossa Senhora; numa procissão da aldeia em que nasci. Queria dizer às pessoas, ‘é um engano, sou a Armandina...’, mas o meu corpo estava petrificado, e assim, naquela aflição, fui sendo levada pela multidão... até gostei, o calor apertava e eles tiravam-me da soalheira e encaminhavam-me para a igreja... se é fresca aquela igreja! Mas estava inteiriça, como uma imagem, em cima de um andor. Eu pensava, estava em mim, mas algo me paralisava, naqueles preparos... E pergunta-me, numa ansiedade quase prazenteira: o sr. acha que isto tem a ver com a minha morte?».
Entro no S. Jorge ainda atordoado pelo colóquio com a anciã, bebo um café e decido ir verter águas, antes de enfrentar a estucha. Franqueio descontraídamente a porta do WC e sou surpreendido por uma pistola, que me mete no sério. “Andor, andor...”, grita o meliante, enquanto o cano da arma varre o perímetro entre mim e um homem cujo pavor senta na bacia. “Andor..”, ameaça o agressor. E eu saio, em suores frios. Gesticulo para os polícias, à entrada do cinema, e galgo as escadas para o balcão. Agarrava no puxador da porta da sala quando se ouviu a detonação. Entro no escuro, sento-me atarantado nas primeiras filas, limpo o suor e tento concentrar-me no écran, alhear-me do burburinho que crescia nas minhas costas e dos gritos que se sucediam no átrio.
Na fita, durante as duas penosas horas que se seguem, um cara larouca das Avenidas Novas enfeita alguns quadros do século XVIII inglês e desbarata, em nome da tradição pictórica, o sarcasmo e a sujidade que magnificam Thackeray. Um belíssimo abajourt com a lâmpada da arte fundida por dentro. Eu cabeceio, a espaços.
À saída, desço ao Riba D’Ouro, firme na ideia de emborcar um uísque e de sacudir um pouco a bizarra sequência dos acontecimentos e o trânsito danado da palavra «andor»; sequioso de limpar os olhos na peneira de Wittgenstein.
Dou três goladas, rabisco três linhas acerca do emburguesamento do pícaro. Abro o livro ao acaso, na página 178, e é-me atirada pólvora aos olhos: durante a guerra, no barco-patrulha que controlava a margem esquerda do Vístula, onde se encontravam os russos, Wittgenstein é o homem encarregado de manejar o reflector durante a noite: um alvo ideal. O perigo é constante, ainda que a sua gravidade dependa das escaramuças hipotéticas provocadas por um ou pelo exército inimigo.
Rebobino: Wittgenstein fez a guerra num barco-patrulha, descendo e subindo o rio Vístula. E que serviço prestava? Era o homem que apontava o reflector para as margens, expondo à luz as prováveis emboscadas do inimigo.
Situação tremenda, meu caro, que configura a metáfora ideal para a condição do criador: a sua máxima vigilância assenta na dádiva da sua fragilidade. Ao expor expõe-se. E é este assumir do risco que lhe dá parte do valor. Há valor quando há risco, avez-vous compris?
Interrogo-me: que risco foi o meu, nos lavabos? Se a minha tivesse tido uma intervenção enérgica, não poderia ter salvado o encurralado? Provavelmente, o agressor disparou para o tecto, como dissuasão, ou terá sido o polícia a dominar a situação, evado-me em desculpas. Andor, andor, a velhinha do 40 enfrentava mais animosamente o espectro da sua morte. E, neste ressaibo com sabor a cobardia, capacito-me que a única coisa que importa, como dizia o Cesariny, é chamar o empregado e clamar bem alto: este pastel de nata está uma merda. Quando ao pastel de nata concerne, eu bebia malte, por acaso no ponto.
Cheguei a casa, peguei na pinça e tirei um pentelho a mim próprio: para nunca mais me esquecer de estar à altura das provas de vida.
Nous avons compris, sim senhor. Belíssimo exercício metapoético, com uma cadência, um ritmo e uma selecção do material discursivo à la Cabrita. Isto é, que parece coisa simples, que parece conviver displicentemente com o respirar. O que mais admiro destas lições sobre João de Deus é essa tua capacidade para aliar descrição e reflexão (qualidade que tanto admiras em outros autores, mas que praticas tanto ou mais que os ditos) sem nunca perder a mão sobre a narração, essa ausência (clássica) de pudor em sentenciar (algo tão mal visto nestes tempos do politicamente correcto), essa experimentação sobre a experiência mesma, seja ela mundana ou artística (que, chez toi, se alimentam mutuamente)sem contar os divertidos e surpreendentes finais. Tudo flui. Fica a pergunta - cada vez mais acompañada de perplexidade: onde se escondem os editores?
ResponderEliminarObrigado e abraço
Gostei, Cabrita.
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