quinta-feira, 16 de junho de 2011

JANTAR COM ESPINOSA E ALGUNS AMIGOS

 Em 2009 fui convidado para dar um curso de guionismo em Taanannarive, capital de Madagáscar. Convite irrecusável. Mas teria de dar as aulas em francês, língua que dominava muito bem na leitura mas que falava como um cuco que acabou de aprender espanhol. Para me impregnar, durante dois meses adormeci com vários filmes franceses no colo, e traduzi dois livros, um de prosa e outro de poesia. O de poesia foi um dos mais estranhos livros que me foi dado ler, Jantar com Espinosa e Outros Amigos, do poeta hebraico Israel Eliraz, traduzido para francês pelo autor e vários de seus amigos, entre os quais o poeta Michel Deguy. É um longo poema de cem páginas dividido em 5 capítulos.
Pouco sei dizer sobre este livro, a não ser que me cativa e intriga, à vez. E chega-me. O próprio Eliraz define-se assim: «Mil faces reflectidas noutras mil faces, eis o que é a acção poética de hoje. Nós e os nossos poemas somos variações infinitas».
Aqui deixo um capítulo.
O curso correu muito bem, muito obrigado. Quanto à ilha e à cidade recomendo-as vivamente – corram.

IV

será que o verdadeiro pode esquecer-se?


50

PODE o verdadeiro esquecer-se
ou camuflar-se
por um tempo

(sob um outro nome ou morada)

ainda que não pereça.

E parece-se com o quê?

Com um estremecimento de asas

(fora da língua) e de repente
ei-lo (o verdadeiro), aqui,
no imediato

(por entre retalhos de sede) e
nós não sabemos onde
enfiá-lo


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como o círculo o verdadeiro
conhecemo-lo
não por qualquer

outra coisa, mas por si mesmo.

Manifesta-se aqui
e não algures

entre pão e mel, pepino
alho e cebola.

O verdadeiro desponta como
uma figueira no pátio

e nós, à volta da mesa, nós
comemos o seu fruto

um por
um


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no mais afastado da cozinha,
no lugar traseiro,
ou outro lado

onde o sítio é mais do que uma
batata a murro
no forno,

aí, reponta o centro,
ao rés da verdade

sem ele nós não podemos
simplesmente conhecermo-nos.

O centro aflui aos cantos e nós
devemos falar disso

com a nossa irmã formiga
que deles surgiu


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há uma formiga por detrás da formiga
que nos corta o fôlego.

Ela sabe o que nós saberemos:

sem a dominação do entendimento
tudo se encaminha para a perda

e aí vivemos como se fora
do nosso elemento. 

Irei dizer isto mesmo aos amigos,
suplicar-lhes: não ignoreis
a disposição do século.

Lá fora expande-se a rataria idólatra,
numa cidade de terracota.

«Os vermes devoram
a carniça do boi »


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perto da verdade fica
um objecto verdadeiro, um aparelho verdadeiro

ambos nos oferecem o corporal
que quer dizer taça,
ou gasto.

Falaremos disso para nos evadirmos
do medo de ser submerso

no imediato
(angustiado).

Alguém se expande, um grito.

Alguém chora, até finar-se
nisso.

Oração pisada, na sua boca
vazia


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e nas algibeiras, afinal, abarrota-se
o vazio ou a promessa?

Tudo o que se ilumina
manifesta-se.

Este punhado de terra no meu bolso
ensina-me a espessura
da regra

e sempre a necessidade de ferramentas
para reproduzir ferramentas.

Que fazer com tudo isto
quando o dia cai,

e não acaba de cair e
de remexer-se grácil em meu redor?

Eis-me ultrapassado


56

fica ainda por confirmar
se é recíproco

o amor de Deus por nós,
os homens que
o amam.

Não cessai de observar
a formiga que se apruma
sobre as suas seis patas

minúsculas como se ela
descobrisse de súbito

a sua complexidade natural para
se erguer sobre as suas seis
patas minúsculas

sem necessidade além de si mesmo


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seja o que for, segue
a coisa verdadeira

e chegarás à vida real

sem ela tu não podes simplesmente
conhecer-te.

Observa este objecto delicado, mágico,
regista-o em quatro esboços
a lápis.

Serei eu obrigado a ingurgitar
o lápis infantil

porque despontou em fruto?

O fruto (alucinante) tombou
na bainha sem regresso,

pânico-de-bolso


58

faz-se tarde e talvez
isto não acabe.

Atrás de nós permanecerá aquele
que consentiu
em que nos fôssemos sem ele

direitos ao cerne.

É este o tempo certo
de exalar-se, de se imiscuir

antes que a luz sólida
se apague na boca?

Passam os dias e
a alegria

fora do alcance. Faz-se tarde
e talvez isto não acabe


59

o jantar não nos protege.

O que se quebra não pára
de quebrar-se.

O fogo perde a sua natureza metafísica
entre os extractos
do jornal da tarde.

Só os pueris deuses da casa
arrastando os pés nus

armam um barulho lastimável.

Eis-nos no vazio
na direcção do verdadeiro (que
é uma bolso)

(todo o grão
é bolso)


60
torno à cozinha
na cozinha, sento-me perto

da formiga sábia no fito de estudar
as coisas reais

e apago o escrito que não
cesso de escrever

toda a noite, não cada noite.

Agora já não sei mais se
se apresenta sobre a mesa uma nuvem

ou sobre a nuvem uma mesa.

Feliz o que pode dizer:
«Um dia destes
vou-me»

etc.


61

tudo isto toma o seu tempo.
A criança perde o pé.

Bailes intermináveis, etc.

Feliz o que pode dizer:
«um dia destes
vou-me»
etc.

A estrada reflecte
uma nuvem, mancha
enodada

excesso de angústia como
uma palavra extraviada
entre regras

etc.



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