Hoje sonhei toda a noite com o Al Berto. Acordei cheio de saudades dele. Por isso ponho em baixo o texto que publiquei numa Phala da Assirio & Alvim quando ele morreu:
«Não éramos ainda animais de relutância. Eu teria 18 anos e o Alberto 29 quando deglutimos os primeiros canecos. O Al Berto regressado da Bélgica, onde trocou os pincéis pelo estilógrafo, eu trasladado de uma adolescência turva, que me deixou mais próximo da adivinhação pelos búzios do que de qualquer outro enlace viável.
O Al Berto acabara de editar o seu À procura do Vento num Jardim de Agosto, O Retrato de Homem Faca, do Tony Duvert, e o Demasiadamente Belos para Quem Só Não Queria Estar Só, do Sérgio... (que o autor me perdoe, esqueci o apelido), um livro ousadíssimo para a época e que eu me esforçava por distribuir, apesar da facilidade com que se incendiavam as pestanas dos livreiros quando deparavam, no miolo do livro, com fotografias de efebos nus, contra ou num sulco entre dunas – que iluminavam toda a matéria do devaneio.
Um ano depois e milhares de canecos repartidos o Al Berto editou o Meu Fruto de Morder Todas as Horas e, simultaneamente, o meu atentado lírico, um longo poema com anjos pululantes e vingadores no título. A festa de lançamento, na saudosa Opinião, foi naturalmente conjunta. E foi de arromba. Eu fiquei de borco rapidamente e um cínico de dedos compridos e melados aproveitou e papou-me a miúda. Aprendi aí que as mais duras traições são as domiciliárias – ou tinham-me os deuses visto tão próximo da glória lírica que, no seu arcaico sistema de roldanas, se decidiram pelas compensações? Durante anos o Al Berto não soube porque fazia eu do lençol uma mortalha quando me conhecera tão atilado nos amores. Nunca lhe disse – e como se logo no título me dera por anjinho, se ele era o editor? – que me vingava do primeiro livro.
Um ano depois de começar a privar com o Al Berto tive outro dos “coup de foudre” da minha vida: conheci o Guilherme Ismael no Escola de Cinema. Sem saber ainda que na Bélgica ele e o Al Berto haviam escrito a quatro mãos sobre a epopeia de Ícaro: um pára-quedista descobre, em queda livre, que certos cordéis são um atalho para a alma. Que pensa, quantos sedimentos levanta sob a laje do medo este desalentado Ícaro, antes de se estatelar no chão? Um manuscrito que nunca li, mas que sei existir.
Eu e o Guilherme empreendemos uma média metragem: argumento meu, produção e fotografia do Manuel Costa e Silva, realização dele. Local da rodagem? Obrigatoriamente a quinta do Al Berto em Sines.
Era a história de um escritor febril que se fechava numa mansão para escrever uma novela enquanto as suas personagens vinham de longe (da Patagónia?) para o matar. A generosidade do Al Berto aturou uma equipa de rodagem em casa enquanto a ponta do seu indicador premia a Nikon. Eu e o António Pinto Ribeiro (que hoje teoriza sobre o estado abúlico das cadeiras) éramos os actores (eu mudo e quedo e calado) e o Al Berto aparecia numa cena ao espelho, como um duplo, um reflexo alucinado do escritor.
O Guilherme Ismael foi trabalhar para a BBC e o filme, já montado, a que faltava acrescentar simplesmente dez minutos de música, foi depositado no Centro Português de Cinema, durante um ano, até às primeiras férias do Guilherme. No regresso este constatou que as latas tinham sido abertas e o filme utilizado como pontas de montagem. A barbárie havia feito das suas e cortado as pernas ao duende Al Berto, mesmo por detrás do espelho.
Entretanto, num intervalo da rodagem, com a desopilação que dá a embriaguez, resolvi dar um bigode ao narcisismo de Pinto Ribeiro. Passeei nu pelos quartos, em poses, e fui deitar-me nos tapetes de azedas que rodeavam a casa enquanto o Al Berto me tirava fotografias. Tínhamos combinado um portfolio que enviaríamos para Hollywod, com os dizeres na capa: «Um De Niro das Torcatas Procura Melodramas Solteiros». Só depois do vexame e de outra garrafa vertida o Al Berto me disse que não tinha rolo na máquina. E assim perdi uma carreira.
Nunca gostei da prosa do Al Berto. Aquilo sempre me pareceu um sofá com cornucópias. A publicação de Lunário separou-nos. Quando crescemos afiando os lápis na mesma sala a sinceridade é uma faca de dois gumes, que às vezes enferruja no sangue. Ou seja: já não nos podíamos ver e afastámo-nos.
Em 93 fartei-me do cinema e do teatro e decidi voltar à escrita, publicando um livro de contos, Cegueira de Rios. Há muito que não falávamos e eu, que causticara os títulos que se seguiram a O Medo, nem sequer lhe mandei o livro. Abro o rádio e acidentalmente ouço-o referir-se elogiosamente ao dito. Fiquei boquiaberto e percebi então que o bicho generoso e de lealdades que eu conhecera se mantinha. E senti-me mesquinho, grotesco, um cretino – que importância tem a literatura? Entendi a lição.
Havia um vício que em dias de alta voltagem engrenávamos à mesa. Um contava uma história, uma graça, uma adivinha, e o outro tinha de replicar, inventando outra. Lembro-me desta: «Um homem debruça-se no rio e coloca uma anilha no seu reflexo. Quem responde ao chamamento?», e desta outra: «Um alcião engana-se na rota e vai ter ao Mar Morto. Onde pôr o ovo?».
E conto-te esta, meu caro Al Berto: Hoje, no meio da redacção deste texto, numa esplanada da Avenida da Liberdade, veio uma cigana interromper-me, cravar-me. Tinha numa mão um papelinho onde se identificava como originária da Bósnia e mãe e viúva. Eu não admitia dar-lhe mais de duzentos paus mas como me apetecia retê-la contei-lhe – em inglês, francês, portunhol - detalhadamente como se cultiva uma Árvore do Conhecimento. Tu sabes: pega-se num vaso e enterra-se um gato persa. Rega-se com vinho – pode ser do barato – e borrifa-se com sangue de codorniz. Lê-se, ao vaso, durante uma hora, todos os dias, As Mil e Uma Noites. Ao fim disto, o Conhecimento há-de chegar porque a terra perdoa.
Ela esboçou um sorriso e antes que eu reagisse (estava virado de cabeça para trás a pedir uma caneca) fanou-me a milena que eu tinha em cima da mesa. Eu já lhe perdoei, perdoa tu também.»
Obrigado pela partilha, texto emocionante.
ResponderEliminarUm emocionado e bem humorado panegírico ao Al Berto, cuja poesia é uma das mais belas de Portugal.
ResponderEliminarBeijos do Brasil!
Eliane
em relação ao retrato do homem faca do tony duvert
ResponderEliminargostava de saber mais sobre isso
simpatizo particularmente com esse livro
que posso dizer mais? tinha uma bela capa do al berto, vermelha, uma impecável tradução da luiza neto jorge, e foi um fiasco de vendas. não me lembro na altura de ter saído um 'único artigo sobre o livro ou o duvert. curiosamente, eu próprio só voltei a ler o duvert o ano passado, l'ile atlantique, da minuit, que encontrei `a venda na rua, na beira, em mocambique...
ResponderEliminarlembro agora que na altura o al berto me fez ler também o quand mourut jonathan, e que em casa dele dele havia ainda o le bon sexe illustr'e, de que não me lembro de nada, mas cujo titulo prometia...
ResponderEliminarNão queiram que ele volte. Sofria demais para querer sequer voltar.
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