Em 2008, como treino e preparação para o romance, que tem um fôlego e especificidades muito diferentes do conto, que tem sido a minha área, escrevi uma novela pícara e com laivos de pantagruelismo.
Como personagem escolhi o João de Deus, o alter-ego de João César Monteiro ou vice-versa, com o atrevimento que me apraz.
Era um exercício para me exercitar na extensão e no detalhe que o romance subentende, mas no qual me diverti como um bruto.
Passei depois a novela a três amigos, todos escritores. Com a generosidade dos amigos, eles vaticinaram-me um êxito estonteante.
O que evidentemente foi desmentido pelos editores, 4, para quem enviei o livro. Ou silenciaram absolutamente, ou ternamente responderam numa linha dizendo que eu estava doido. Não tive nenhuma reacção séria, técnica, ao livro.
Por isso, como eu próprio não o levo muito a sério, decidi publicá-lo no blogue, um capítulo por semana. O próximo capítulo será postado no próximo domingo.
Como justificação para os editores escrevi então:
«Numa contabilidade rápida, o cinema novo português deu poucas personagens. Talvez o Belarmino; Vanda, a eterna viúva de O Passado e o Presente, Kilas, o inspector interpretado pelo Nicolau Breyner, em Os Imortais… e, definitivamente, João de Deus, esse alter-ego de João César Monteiro.
Agradava-me em João de Deus uma liberdade objectiva: é a última personagem portuguesa desempoeirada e liberta das suas circunstâncias, ou antes, aquém e além delas, simultaneamente, um desses raros que são sempre maiores que a situação, como Charlot e os pícaros do século XVII ibérico; criaturas desataviadas de psicologia. Suspeito que - na entorpecida condição in between que se tornou a de Portugal - João de Deus terá sido o último dos portugueses livres.
Cansava-me, em João de Deus, o mesmo que, nele, me exultava. A mais brutal obscenidade antecedia uma cosmologia, o chiste inconsequente, no desfrute de um sorvete, iluminava o fulcro onde os segredos do mundo se articulavam e expunham.
Era um místico infiltrado a fundo por Dada.
E agradava-me, sobretudo, que a locução de João de Deus juntasse Camões e Pound, Antero e Pessoa, Mozart e os surrealistas, a derrisão e o riso, os jograis e Piero de La Francesca, num mesmo novelo. De igual modo, nele (João de Deus/César Monteiro), o sagrado e o profano, o riso e o sério, o sexo e a morte, o erotismo e a pornografia, o vernáculo e o ornato da linguagem, a vida e a literatura eram indiscerníveis: o desafio, nesta tarefa, era mimetizar semelhante “orquestra barroca” em andamento, tendo sempre o humor como filtro.
Que esta biografia paródica de João de Deus, antes de começar a filmar com o César Monteiro e depois (o resto é público), divirta é tudo o que se pretende. E por força maior, homenagear o seu criador: um cineasta que escrevia como poucos escritores e ciente de que a arte rompe conveniências (sejam quais forem) e exige atrevimento. »
Quem viu a trilogia em torno do João de Deus sabe que para além de um aparatoso des-metafísico, o sacrista é um obsessivo coleccionador de pêlos púbicos. Que admira pois que seja por aí que tudo comece?
A PAIXÃO SEGUNDO JOÃO DE DEUS
AS REALIDADES
Era uma vez uma realidade
com as suas ovelhas de lã real
a filha do rei passou por ali
e as ovelhas baliam que linda ai que linda está
a re a re a realidade
Era uma vez noite de breu
e uma realidade que sofria de insónia
então chegava a fada madrinha
e placidamente levava-a pela mão
a re a re a realidade
com as suas ovelhas de lã real
a filha do rei passou por ali
e as ovelhas baliam que linda ai que linda está
a re a re a realidade
Era uma vez noite de breu
e uma realidade que sofria de insónia
então chegava a fada madrinha
e placidamente levava-a pela mão
a re a re a realidade
No trono estava uma vez
um velho rei que muito se aborrecia
e pela noite perdia o seu manto
e por rainha puseram-lhe ao lado
a re a re a realidade
um velho rei que muito se aborrecia
e pela noite perdia o seu manto
e por rainha puseram-lhe ao lado
a re a re a realidade
CAUDA: dade dade a reali
dade dade a realidade
A real a real
idade idade dá a reali
ali
a re a realidade
era uma vez a REALIDADE.
dade dade a realidade
A real a real
idade idade dá a reali
ali
a re a realidade
era uma vez a REALIDADE.
Aragon
Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos nada mais têm para nos dizer, desculpável é que nos viremos para a garrulice fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros.
M.Yourcenar
Memórias de Adriano
1
Átrio
Numa amolecida manhã de domingo de 2004, de malas já aviadas para o Báltico, flanava pela Baixa. Despedia-me dos lugares e murmúrios de meia vida; esquecido de ser lince, diluído no branco imponderável do Verão; sonâmbulo, sem pressa ou rumo.
Desperta-me, algures, a repetida ladainha dum realejo. O anacronismo arrastou-me até à esquina da Rua da Prata com a dos Retroseiros. Aí, um homem magro, meio encurvado, narigudo, de óculos escuros e face escalavrada, dava à manivela num realejo velho poisado sobre uma caixa de electricidade, ao mesmo tempo que, quase em surdina, recitava algo. Apurei o ouvido: era A Tabacaria, de Pessoa. Aos pés, no forro do boné, rebrilhavam moedas. Não abalei, senão à terceira reprise do poema, declamado em sessões contínuas. Algo me incomodava na figura.
No dia seguinte, volto à Baixa para visitar o meu amigo Stephan, cujo atelier fica num quinto andar da Rua do Carmo, e ao entrar no átrio do prédio cumprimento o porteiro, sentado na secretária que se dispõe para lá da caixa dos elevadores. As duas metades da porta do ascensor convergem lentamente para o centro, e, na nesga final, sou atravessado por um raio: o porteiro era, em lavado, o homem que vira no dia anterior com o realejo.
À descida, de propósito, pedi-lhe lume: era ele. Não somente o homem do realejo como a alma gémea de João de Deus. Saio apardalado.
No domingo seguinte (o meu último domingo em Lisboa) voltei à esquina da Rua da Prata com a dos Retroseiros. Lá estava ele, em realejo. Ouço o poema e deixo duas moedas no boné.
Volto na segunda ao átrio do prédio, na Rua do Carmo, e aí não estou com meias medidas, estendo uma fotografia de João de Deus ao porteiro, pedindo-lhe um autógrafo.
Ele fica encabulado e sussurra:
Como me descobriu?
Basta olhar para si… - afianço eu, espantado – Pensava-o morto.
Cita-me Pessoa:
Morrer é não ser visto…
Insisto com ele durante quatro dias para me deixar entrevistá-lo, explicando-lhe que, de abalada, não posso adiar as premências. Por fim cede. Passamos em claro as noites de quarta, quinta e sexta, eu, ele, as suas baforadas e fantasmas, e o gravador. Na madrugada de sexta desentendemo-nos, gravemente. No sábado apanhei o avião para Vilnius, capital da Lituânia..
Este é o relato circunspecto que resultou dessa entrevista.
Duas semanas depois de ter partido, contou-me o Stephan, o porteiro deixou de aparecer ao serviço e nunca mais foi visto.
2
INCIPIT
1
Como lastima o Steiner, será sobrinho do renomado fabricante de ascensores que fez fortuna em Viena de Áustria?, incipit, a orgulhosa e florescente palavra latina que designava o Início, degenerou em Incipiente, desprimor contra a qual travarei combate, à dentada se tanto me for exigido. E que, com sanha e esmero, se grife a voz na retina do leitor, percuciente, verdadeira, pinchada de sangue – está dito, adoro cabidela -, ainda que se lhe misturem duas gotas de groselha. Está a gravar?
No início, as verdades são simples, ou podem não sê-lo: quem pisa a flor da abóbora não lhe provará a sopa. Do que decorre não ser verdade que só a inocência ou a ignorância sejam felizes. Espreitemos the dark side of the moon. Os indícios, são a pontapé na Cabala: Deus conhece de cor o número de pêlos e cabelos de cada um. Na origem, a observação do dano posterior já é incipiente. Mas, na origem, é como nos distingue, é o código de barras que nos coube em lotaria. Picuinhas, l’emmerdeur. Quando se rumina a cifra do infinito, para quê voltar a contar pelos dedos? Que vantagem se tira em entrar e sair de casa pela janela das traseiras? Daí que os Yoruba, que não dormem em serviço, abominem esse deus do inconsciente que habita os sonhos e a quem atribuem a demoníaca capacidade de contar. O maior desejo deles é não serem contados, não fazer parte da renda púbica. Eis donde me vem o impulso de roubar às criaturas que momentaneamente actuam na minha arena amorosa a mais irrelevante prova do recôndito: fanando-lhes um pêlo púbico danifico-Lhe o código de barras. E o meu nome não é obra do acaso – eu sou a sombra que poupa muitos ao juízo patriarcal, pois, eis a fraqueza do Altíssimo, só se aplica a saber de cor aquele que não tem tempo para a averiguação final.
Continuando, sem mais delongas ou centavos freudianos, foi ao balcão do quiosque dos jornais, no Príncipe Real, que encetei a minha colecção de pentelhos.
Ao tempo, que remonta ao lá vai alho, repontava naquele balcão uma jovem oxigenada de olhos cor de oliva, lábios violeta e peitos fluorescentes. Diariamente, eu ensaiava com ela alguns ditos brejeiros, aos quais escoiceava antes de se pôr a grazinar, suspirando como uma porta entornada. Adoro esta imagem, que catei no poeta Ángel Crespo, e que prazenteiramente escolheria para epitáfio: João de Deus, a porta entornada.
Abreviando, um dia, vesti uma camisinha branca com um Miró estampado no bolso, reforcei de borsalino, e subi a Rua do Século encrespando a voz num havana.
Em vendo-me chegar a sonsa fez-se de fingida, para eu a mimar com um piropo:
De mais nenhuma senhora estou queixoso, que de sua genitália; umbral que só ao círio apagado de Deus está reservado…
Ai, sr. João de Deus, é tão maroto…
Aí está uma palavra em desuso, como andrajos…
O que vai ser hoje?
O olhar dela, de lúbrico, acenderia toda as velas da igreja de S. Roque. Num impulso, passei-lhe o chocolate que trazia no bolso e, imperativo, no timbre que o Mason me roubou, pedi:
Esfrega-o.
Nem hesitou. Rebrilharam-lhe os dentes (confirmei-o depois: estrelavam assim que a rata dela virava paul, aí está uma metamorfose que o Ovidio não previu), subiu a saia plissada, meteu-o na cuequinha, como fazem hoje muitas com os telemóveis, e esfregou-o na crica. Bom, primeiro tirou-lhe a prata.
O chocolate, reservado para uma mousse, tinha uma semana de frigo, e estava rijo. Ela esfregou-o com ganas no tépido rincão; nem quando chegou um sexagenário distraído e gaguejou «O Co-co-mércio do Porto, faz-z favô…» ela abandonou a manobra. Dissimulou, um olho na tablete, outro no imprevisto, aviou o cliente (profissionalismo deste já não há!) e continuou o ruge-ruge.
Ia desfalecendo quando as narinas aspiraram o cheiro que se exalava da esfrega, imagine uma essência galante com um assobio de chocolate e outro de marisco. Ela revirava os olhos e cruza a rua o Agostinho da Silva. Cumprimentei-o de longe, apontando-a:
«Mestre, uma portuguesa desatada…».
O meu enlevo, ao inspirar a fragrância da tablete amolecida, antes de a voltar a encamisar na prata, não vem ao caso porque aquele era aroma edénico que remontava ao primeiro homem. Nem lhe agradeci, o que é genésico não é para agradecer.
Está ali, naquela moldura. Entre as 11h30 e as 11h35, incidindo-lhe o sol em 68 grados, vê-se a mancha do chocolate.
olá António
ResponderEliminarComo sabes diverti-me imenso a ler "A Paixão segundo João de Deus". Não estarei obviamente incluído no lote de escritores, não sou escritor, que referes.
Diverti-me tanto que continuo a por o texto debaixo do nariz dos editores que me passam no meio raio de acção. Curiosamente, por outros motivos, tive agora contacto com uma editora onde conhecia vagamente algumas pessoas. Zás! falei na tua novela e, abusivamente por não te ter solicitado autorização, já lhes enviei a Paixão do João de Deus, antes que a crise, anunciada há dezenas de anos, acabada de chegar à maturidade ficou está mais voraz não termite a edição livreira. Nos corredores sussurram-se quebras da ordem dos 20%, num mercado como o nosso calculas. João de Deus nos valha!