Óscar Hahn, chileno (1938), actualmente professor no Departamento de Literatura Hispano americana da Universidade de Iowa. Li em tempos o seu primeiro livro de poesia, Esta Rosa Negra, de 1961, considerado um livro de viragem na poesia chilena, mas na altura não me sensibilizou. Apanhou-me agora, que o releio numa Antologia da Poesia Chilena do século XX, da Visor. Estas traduções dedico-as ao rezinga do Flávio Pimentel.
TELEVIDENTE
Aqui estou eu de volta
ao meu quarto de Iowa City
Engulo aos sorvos o meu prato de sopa Campbell
frente ao televisor apagado
O ecrã reflecte a imagem
da colher engalfinhada na minha boca
E sou um outdoor de mim mesmo
que anuncia nada
a ninguém.
SOCIEDADE DE CONSUMO
Percorremos de mãos dadas o hipermercado
entre as filas de cereais e detergentes
avançamos de prateleira em prateleira
até chegarmos às latas de conserva.
Examinamos o novo produto
publicitado na televisão.
E de imediato olhos nos olhos
sumimos um no outro
e nos consumimos.
NUMA ESTAÇÃO DE METRO
Desventurados os que enxergaram
uma rapariga no metro
e se enamoraram de rajada
seguindo-a enlouquecidos
enquanto a perdiam
para sempre entre a multidão.
Porque eles estarão condenados
a vagar sem rumo entre as estações
e a lacrimejar nos refrães das canções de amor
que os músicos ambulantes trauteiam nos túneis
E talvez o amor não seja mais que isso
uma mulher ou um homem descendo de um carro
para uma estação de metro e que resplandece uns segundos
antes de se perder na noite sem nome.
OSSO
Como é curiosa a persistência do osso
a sua obstinação em lutar contra o pó
a sua resistência em converter-se em cinzas
A carne é pusilânime
Recorre ao bisturi a unguentos e a outras máscaras
que tão somente maquilham o rosto da morte
Tarde ou cedo será pó a carne
castelo de cinzas varrido pelo vento
Um dia a picareta que escava a terra
choca com algo duro: não é rocha nem diamante
É uma tíbia um fémur umas quantas costelas
uma mandíbula que alguma vez falou
e que agora volta a soletrar
Todos os ossos falam penam acusam
alçam torres contra o olvido
trincheiras de brancura que brilham na noite
O osso é um herói da resistência
FANTASMA EM FORMA DE TOALHA
Sais do duche escorrendo água
e secas o corpo com a minha pele turca
E há algo que te empurra a roçares a esfregares-te
entre os músculos húmidos
Entras num terrível frenesim
numa loucura que lembra a Morte
Até que outra humidade mais densa que a água
te empapa a carne com o seu mel pegajoso
E tu apertas as pernas e gemes e gritas
e eu te chamo inteira com os fios da minha língua.
VIA LÁCTEA
Saía-lhe leite dos peitos
saía-lhe leite que descia pelo seu corpo
em arroios de indizível brancura
Saía-lhe leite que fluía no seu ventre
e lhe molhava os pés
e escorria por debaixo da porta
Era um rio de leite lépido pela rua
numa tangente ao bairro de Santa cruz
chegava à praça de dona Elvira
Leite que subia pelas árvores
ascendia aos céus
e se alastrava na abóbada infinita
Eram grumos de leite que brilhavam no firmamento
AUTORETRATO DE VAN GOGH
Pois, comecei a falar com o meu próprio espelho
o meu espelho contradiz-me não me diz o que eu quero ouvir
A puta que o pariu
Há uma série de coisas que giram no mundo
coisas que giram em torno do seu eixo
Algo que gira e gira e não pára de girar
O latido dos demónios põe a minha orelha contra o meu ouvido,
escutam o ruído dos meus pensamentos
Plaf, um copo de tinto tinge de vermelho a toalha
Esta é a hora dos cataclismos celestes
quando os mortos saem dos espelhos
e o céu estala em remoinhos de fogo
Um ror de vacas vermelhas com a pele colada aos ossos
A noite estatela-se contra o interior do meu crânio
e rompe-se em milhões de estrelas
O meu pincel é um instrumento de tortura
Os meus quadros estão cheios de flagelações
Vejo duas borboletas brancas sobre um fundo verde
Uma gota de sangue escorre pelo espelho
Molho o pincel e pinto feridas na minha cara
A minha cabeça é um girassol em chamas.
Uau!!! Esplêndido!!! Magnificamente nu e cru!!!
ResponderEliminar“Fantasma em forma de toalha” é arrebata-dor!!!
Bjs
Maravilha!
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