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São hoje as eleições legislativas em Portugal. Algo de facto tem de mudar, mas teria de ser de cabo a rabo, e a democracia parlamentar (lamento, mas não concebo outro regime melhor) precisa de ser reinventada. Julgo que é o tempo para assumir de novo a política como uma festa e fugir dos que falam em desígnios e simultaneamente a abraçam como o exercício «do que tem de ser».
Chega de cinismo e de pragmatismo.
Assustam-me a seriedade de Passos Coelho (o homem nem dançar sabe, tem um hieratismo inconcebível), a ratice de Sócrates, os esgares de Louçã, o populismo de Portas – e diante de Jerónimo fico tomado de compaixão.
Aproveito o dia das eleições em Portugal – e felicito desde já os vencidos e dou os
pêsames aos vencedores, que serão os vencidos de amanhã, para falar um pouco da visão que Pessoa tinha da democracia e da política; e sugiro que talvez fosse útil reler os escritos políticos de Pessoa, muito para além da sua controvérsia e das suas ingenuidades epocais (na sua altura, aos olhos da altura, seria desculpável aceitar “uma tirania momentânea” em nome dos fins e da boa consciência revolucionária; hoje, depois da perspectiva histórica do século XX, a ideia é abominável):
pêsames aos vencedores, que serão os vencidos de amanhã, para falar um pouco da visão que Pessoa tinha da democracia e da política; e sugiro que talvez fosse útil reler os escritos políticos de Pessoa, muito para além da sua controvérsia e das suas ingenuidades epocais (na sua altura, aos olhos da altura, seria desculpável aceitar “uma tirania momentânea” em nome dos fins e da boa consciência revolucionária; hoje, depois da perspectiva histórica do século XX, a ideia é abominável):
Muitas discussões têm levantado o itinerário político do F. Pessoa.
De antemão, tenhamos sempre presente esta advertência do próprio: «não se deve cair no erro pragmático de misturar o Útil e o Verdadeiro (…) O erro político fundamental tem sido julgar que pode haver uma política verdadeira; não há, só há uma política útil».
Só há uma política útil. E foi em torno disto que o seu raciocínio e mesmo as suas contradições – que procuravam aliás acompanhar o ziguezague da vida política da República – se orientaram:
«Se há facto estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentada sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo própria. (…) Ser coerente é uma doença, um atavismo., talvez (…) A coerência, a convicção, a certeza, são além disso, demonstrações evidentes – quantas vezes escusadas – de falta de educação. (in, Crónicas da Vida que Passa, 1915)»
Pessoa coloca acima da coerência o primado da experiência e sobretudo, por isso fala em educação, apela ao acto de escutar, como factor básico para a evolução do pensamento político. Podemos, por conseguir conceber a utilidade de Pessoa como uma forma de manter-se poroso ao pulsar social, aberta à discussão sobre a pertinência e oportunidade das reformas.
Com o título «Considerações Pós-Revolucionárias», Pessoa faz um balanço da República de um teor sulfúrico e em vários escritos, artigos e manifestos, tomou o político Afonso Costa, nos primeiros anos da República, como a sua besta de estimação. Num opúsculo intitulado «A Oligarquia das Bestas», de 1915, chegou a escrever: «Afonso Costa! É um piolho da política. Era possível odiar Franco. A este esfregão nem isso é possível! (…) Franco seria um tirano de merda, este é um tirano de caca!».
A sua desilusão quanto à República parlamentarista, sentimento que partilhou com muitos, foi-se acentuando, e desembocaria numa adesão sincera, romântica e momentânea, à famigerada República Nova, de Sidónio Pais, depois da guerra, um militar que tomou o poder e quis instituir uma República presidencialista, e em quem Pessoa enxergava um perfil mítico. Aliás diga-se que houve mesmo uma febre nacional por Sidónio, que arrastava multidões, mas que acabou por nada confirmar pois foi rapidamente assassinado antes que as suas proverbiais hesitações se tornassem uma mancha de carácter.
Pessoa projectava em Sidónio a figura de um Presidente-Rei que fosse capaz de conciliar «um centralismo equilibrado com uma descentralização municipalista».
No fundo, Pessoa era um monárquico mas não suportava o mecanismo da ascensão dinástica, pois alinhava por um crivo aristocrático, e achava que só devia ser rei quem o merecesse. E durante anos, como Platão, escreveu esboços e esboços sobre uma República Ideal e até fez sair textos aparentemente comprometedores como O Interregno, de 28, que parecia um certificado de legitimação do fascismo nascente. No entanto, devemos ter cuidado com os juízos precipitados, sempre que se trata de Pessoa há um golpe de rins ao fundo da esquina. Na verdade, e não perdendo de vista a sua asserção de que «só há política útil», a sua aparente legitimação da ditadura releva unicamente deste raciocínio
«Uma ditadura, apesar de ilegal, pode ser todavia justificada pelas circunstâncias, quando num país é tal o estado anarquia, governamental ou social, que torna impossível da legalidade. Entre um estado de guerra civil, real ou latente, e um governo de força, por ilegal que seja, que caiba essa anarquia, nenhum homem de recto critério, por liberal ou democrata que seja, hesitará em tal apoio.»
E prossegue com uma ressalva imediata: «Sucede porém que até o ilegal se quer que o consideremos justificado, tem que obedecer a certas normas (…) e o seu papel é limitado à manutenção da ordem até que a anarquia desapareça; desapareça esta está findo o papel da ditadura…».
Pessoa não admitia que qualquer ditadura se perpetuasse, fosse qual fosse o seu sentido político.
Daí que tivesse elegido como inimigo o socialismo soviético e em 1932, dada a teimosia de Salazar em manter-se no cargo, começa a escrever um novo folheto, onde, referindo-se ao anterior «O Interregno» se lê: «Dou hoje esse escrito por não escrito, repito este para o substituir», seguindo-se um arrazoado contra a ditadura, contra Salazar e contra a putrefacção do ambiente e o poder aos medíocres.
Nesse período nem Mussolini escapa à sua ironia feroz. E contra Salazar escreveu um poema mortífero que o teria levado imediatamente à prisão se fosse publicado.
Na verdade, concordo com Morodo, um ensaísta espanhol, quando diz sobre o Pessoa político: a sua concepção de Estado era um sistema individualista, quase acrata (Estado mínimo), oposto à divinização estatal e a toda a coacção partidária: «Pessoa, era um anarquista utópico de direita».
Mas quero, e para terminar, frisar um outro aspecto que me parece mais relevante. Em 1932, num texto chamado Reflexão sobre o Provincianismo, escreve Pessoa: «o urbanismo mental é mais difícil de estabelecer que o geográfico”; associe-se a isto uma outra nota em que Pessoa define os partidos como aparelhos reprodutores da intolerância das religiões, e termos percebido que o Pessoa almeja como homem político não é distinto da metamorfose que a sua transpessoalidade, ou a sua heteronomia, trouxe à definição de personalidade. Pessoa concebe o homem como expressão coral e não como feito de uma só peça.
Em 1917 é publicado no Portugal futurista o «Ultimatum», pela pena de Álvaro de Campos. É um libelo político fortíssimo pela regeneração da Europa, que nesse momento está numa guerra fratricida, e onde o heterónimo de Pessoa propõe uma intervenção cirúrgica anti-cristã, o que compreendia:
a) A abolição do dogma da personalidade
b) Abolição do preconceito da individualidade
c) Abolição do Objectivismo pessoal
O seu projecto, psicologicamente, corresponderia a uma revolução coperniciana, com os devidos nexos políticos traduzidos num novo sistema em que cada cidadão teria direito a X votos, consoante o mérito pessoal. Pessoa, como era um Sindicato, teria direito a, no mínimo, 6 votos: ele mesmo, 4 heterónimos (contando com o António Mora), e o semi-heterónimo Bernardo Soares.
Isto é mais do que curioso (ainda que muito perigoso e rejeitável), sobretudo como pretexto para uma discussão do que são os valores em uso na preguiçosa e dolente democracia hodierna e nunca esquecendo que Pessoa sobretudo visava um sistema que premiasse o mérito, um sistema antitradicionalista e anti-hereditário, e ao arrepio de quaisquer interesses corporativos.
Lembro que Copérnico foi o primeiro a dizer que afinal a terra não estava no centro do sistema solar mas sim o sol, ou seja o centro de repente era exterior a quem o olhava e localizava-se fora do sujeito de conhecimento.
Foi esta deslocação que Pessoa efectuou toda a vida com sucesso, no que respeita à personalidade. Um dos poucos democratas genuínos no século XX, um homem que vai ao cerne receptor da ideologia, o sujeito, e o esvazia, substituindo-o por uma pensamento que não se move por antagonismo dialéctico mas no trânsito entre polarizações.
O que à partida torna impossíveis pulsões hegemónicas, autoritarismos e dogmas. Mais democrático é difícil.
Em 1936, quando morreu Fernando Pessoa, os serviços fúnebres ficaram a cargo da Agência Barata.
É um simples pormenor, mas no caso de Pessoa nenhuma coincidência é um acaso.
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