Este capítulo é coxo, mas não posso deixar de o contar.
Cismei que só um exemplar pessoano seria digno de figurar como nº 3 da minha colecção. Coloquei um anúncio no Diário de Notícias: “Procura-se a piquena suja que comia chocolates em 15 de Janeiro de 1928 à porta da Havaneza dos Retroseiros, sita na esquina da Rua da Prata com a dos Retroseiros, e que é citada no poema A Tabacaria. Oferece-se gratificação”. Uma imprudência - estávamos a 8 de Março de 1975.
No dia seguinte, a fila de candidatas quase dobrava o fim da rua, era um autêntico charivari. Não me acudira tal mobilização de cepos e múmias. O céu mostrava o cenho carregado mas não se decidia, teria sido o melhor para dispersar aquela tropa.
Juntei-as num magote e perguntei:
O que é possível que aconteça em conjunto?
Elas, entreolhando-se, rumorejavam.
O povo unido jamais será vencido… - ensaiou uma, obtendo adesão de algumas.
Choveram as imprecações. Uma de olhos azuis, globulosos, magra, apoiada numa bengala, adiantou-se e trovejou:
Que quer o senhor, afinal?
Refazer a verdadeira face de Lilith… - Soletro entre dentes, amaldiçoando as ratoeiras da poesia, pois aquele momento insurreccional iluminava-me a discrepância entre a duração do poema (reactualizado a cada leitura) e o seu tempo cronológico. Incoincidência que germinava a olhos vistos no seio da terceira idade ululante, ali presente. Aos fósseis da piquena suja só importava a frandulagem, as bagatelas, o taco, o carcanhol, o pilim extorquido por gosto e abstido de esforço. E em que tuba se pacifica uma turba?
Resolvo contemporizar:
Bom, na China, o três é o número da unanimidade… sendo nós latinos e desprovidos do sangue de barata dos chineses vamos no oito, vou escolher oito de vós e as demais podeis passar na mercearia do sr. Nunes a levantar um pacotinho de rebuçados do dr. Bayart, por minha conta.
Um grupo mais afoito reclamava o dinheiro dos transportes. Comecei a duvidar se seria realmente feliz se casasse com a filha da minha lavadeira.
Fascista, ouviu-se.
Azeiteiro, sim, concedo…- amenizei.
Fascista, repetiu-se com funesto eco. Acusação perigosa, naqueles tempos.
Foi por uma unha negra. Para sorte minha aquele bando de pegas, na sua maioria, pôs-se a ruminar a sua malapata e deu às de Vila Diogo. Calhou-me uma por outra castanhola de mau perder – prejuízo aceitável.
Ficaram oito, voluntárias. Dali não saíam, sem saber ao que vinham.
Segui-me… - rugi, meio contrafeito.
Rombas e encanecidas, da alma até almeida … - remoía eu, subindo as escadas.
Passámos à sala. A luz natural estava no ponto para os exames necessários.
Para as ambientar, abri O Toucador, de Almeida Garrett, e declamei:
«De todas as formas que a natureza moldou, a mais gentil e encantadora foi, sem dúvida, o seio de uma bela. A vista de um seio lindo, onde a neve e as rosas se disputam o lugar, não há forças que a apaguem, não há poderes que a substituam, nem poderes que a desvaneçam…».
Uma das anciãs dirigiu-me injúrias de marinheiro, de narigão impotente para cima, e saiu. Graciosamente, ripostei:
A vergonha do corpo é a pior das xenofobias…
Crispou-se a mais atarracada, repetindo a pergunta da velha de olhos globulosos:
Que quer o senhor, afinal.
A hora não estava para mais retóricas:
O desencanto é mais radical que a utopia e o discurso político não passa de um baile de fantasmas. A conjuntura, favorável às forças autoritárias, exige um pouco de luz para afastar tais sombras, e o reposicionamento dos agentes de mudança no quadro de uma dinâmica menos permeável ao dogmatismo e ao avanço da ideologia burguesa, o que nos coloca, como o sabia Bataille, no rasto do erotismo. Dispam-se, por favor. - Acautelando manobras de protesto, socorri-me do poeta - Todo o começo é involuntário. Deus é o agente.
E mostrei-lhes algum dele, em notas gordas. Na sua maioria, sossegaram. Sucintamente, perorei sobre as quatro estações e a mecânica do corpo, para as pôr à vontade, mostrei-lhes reproduções de O Nascimento do Mundo, de Courbet, e falei-lhes da honradez daquele cono, gentio e composto, em tudo igual à decência de Rosa de Luxemburgo que, adivinhando o seu fuzilamento, pediu agulha e linha para coser a bainha da sua saia e morrer composta…
Uma nova panorâmica às milenas – a milena era ainda a linguagem franca do império – decidiu-as a privarem-se da heráldica que as ataviava.
Do estado dos seios, que levaria Garrett a graves emendas no seu texto, não falo.
Ou falarei de um, escondido atrás de uma mão embaraçada, um seio amputado mas onde se realçava um dragão tatuado. Explicou-me, lacrimejando, a dona de tal oximoro, o que passo a narrar.
Chamava-se o coiso Jorge. E, empolgada, copiando uma gravura medieval, ela tatuou um dragão no mais remexido dos seus seios, o direito. Da boca da alimária despontava a flâmula: um mamilo vermelho e pontudo. Ao fim de dez anos enchifrou-o com um coito chamado Hipólito. A carne já lassa, a escama saudosa, mas conseguiram avinhar a rosácea do mundo. O pior é que, sobrepondo-se aos eflúvios da bebedeira, lhe sobreveio o mal, e foi o dragão gravemente esfacelado pela conta bancária do Jorge – “graciosamente”, que a vingança serve-se sem sal. Contava-o a desditosa, de olhos marejados. A sua resposta ao anúncio tivera por motivação uma plausível amortização dos juros.
Os hortos apresentavam-se cuidados. Na generalidade, a natureza fora mais complacente em baixo que em cima.
Contrastando a arcana sensibilidade da piquena com o dragão de S. Jorge, uma ex-governanta de um casarão em Sintra escondia junto à virilha uma tatuagem: uma foice e um martelo coroavam a feia variz que avançava pelo interior da coxa. Tive um vómito, deploro as revoluções que evocam o nome do trabalho em vão, e devolvi-a à precedência, escrevendo-lhe a feltro na outra nádega: «Adeus ó Esteves!»
Outra, o que me atraiu, pintara o matagal de púrpura, o qual rimava com os olhos maquilhados à Cleópatra.
Uma terceira estava rapada. Fractura instalada desde logo entre o grelo como narrativa e a pintura como sua hipotética representação. Passei-lhe duzentos paus e ‘adeus, até ao meu regresso’.
Restavam cinco. Perguntei-lhes, olhos nos olhos:
Qual das cinco inocências conheceu o sr. Fernando António Nogueira Pessoa?
A egípcia lançou-se numa diatribe sobre os temas do amor, da glória e da riqueza em Álvaro de Campos; um sermão equivocamente vicentino e finório demais para a figurinha ranhosa do poema.
Como teste às outras, perguntei:
O Caeiro refere-se à Natureza como «partes sem um todo» ou como «um todo sem partes».
Respondeu-me uma possidónia:
Obviamente, um todo sem partes.
Três das acéfalas anuíram, com acordos de cabeça.
Neguei, peremptório:
É pelas partes que se começa a inquirir a natureza do porco. As partes da ostra não são iguais.
E conduzi-as à porta.
Tu, perguntei à queima roupa a uma das duas que sobravam, que prova me concedes de ser a piquena suja?
Era suja, a menina? – Inquiriu, apanhada em flagrante.
Afinal, que leu a donzela no anúncio?
Começou a fungar. Entre soluços, percebia-se:
O meu marido está desempregado há seis meses… (fungos), a minha filha está na vida… e gangrena a reputação da família…(o verbo é meu… mais fungos) o meu filho perdeu um braço na estiva… a minha mãe, octogenária (fungos com direito a espórios), foi apanhada no telhado a pescar ao corrico as ceroulas estendidas da vizinha…
Despachei-a com o suficiente para duas garrafas de Camilo Alves e recomendei-lhe que escolhesse madeira de cipreste para o esquife.
Bom, nós… - adiantei, à que sobrara, disposto a arrepiar caminho. Por acaso, era a única ainda recomendável.
Ela abriu a bolsinha e tirou de lá um revólver que me apontou.
Despe-te, ordenou ela.
Não vejo necessidade de me apontar a fúcsia…-
Fúcsia? - deu-me uma coronhada.
De me apontar a fusca… - Respondi dorido - Como pensava estar diante de uma dama, por metonímia, num ornato de linguagem, chamava-lhe princesa, dada a relativa proximidade entre o termo que designa arma e o sinónimo para brinco-de-princesa…
Obedeci-lhe, antes que novo galo cantasse. Virou-me, fez-me deitar o corpo sobre a mesa de casa de jantar, pôs luva e expeditamente espetou-me um dedo no ânus. Quis reagir. Levei nova coronhada. Tinha uma agilidade e prontidão impróprias para a idade.
Que procura? – Perguntei a medo.
Microfilmes.
Notei-lhe o sotaque.
Amarrou-me à cadeira, as mãos metidas para trás das costas e atadas ao espaldar. Examinou-me o corpo. Pegou-me no membro, esticou-o e descobriu a minha tatuagem.
Que tem você aqui?
A Nau Catrineta.
Ameaçou dar-me uma nova bordoada.
Juro. A primeira estrofe. Só se lê bem quando está em erecção.
Ponha-se erecto… - grunhiu – quero ver.
Atrevi-me:
O seu sotaque é de onde?
Estive 20 anos exilada… Despache-se!
Erecto como, se estou amarrado?
Aquela mulher era uma fonte de dissuasão. Amparou-me o membro com um garfo enquanto me recitava dois poemas de Maiakovski e um de Elsa Triolet. Quem naquele tempo aguentava com dois títeres de tal jaez sem uma erecção de permeio?
O membro começava a pulsar e estava quase a cuspir quando ela parou.
Protestei:
Por que não prosseguir? Tudo vale a pena se a alma não é pequena.
Levei nova coronhada. Foi direita ao assunto:
Quais são os planos do Frank Carducci para o golpe que estão a preparar?
Não conheço escrito do Pessoa sobre tal.
Não há a menor dúvida, você só menciona reaccionários.
Sempre com o garfo a amparar-me o porrete leu atentamente a estrofe da Nau Catrineta.
Sentou-se ao pé do telefone e discou um número.
Camarada Dimitriev, apanhámo-lo… é ele o agente, de certeza. O anúncio era o código da operação… Aliás, o homem tem códigos distribuídos pelo corpo… Sim, camarada, vou levá-lo para a sede, para o interrogarmos. Claramente, sabe muito mais do que diz.
Passei quatro dias na sede da Associação de Amizade Portugal-União Soviética a levar do bom e do cosido e a tentar soletrar algo que lhes agradasse. Manifestamente, eles não liam pela mesma cartilha que eu. De intrigados, chamaram expressamente de Madrid um especialista em criptografia.
O Artur Ramos e o João César é que me safaram. Conseguiram convencer os camaradas que era infundada a minha ligação à CIA; apesar de eu, queixavam-se, e com razão, ser absolutamente contrário às teses de André A. Jdanov, para quem era inadmissível pensar em prazer estético que não estivesse subordinado à causa socialista.
E cinco dias depois de lá ter entrado, lá saí, todo amassado, daquele inferno, que me destruiu um credo: os revolucionários não admitem sentir a arte no corpo, só na cabeça; único desvio que me parecia imperdoável.
Mas para eles saberem que não me vergavam, cravei vintes ao Lopes, que deixei sobre a mesa do interrogatório. Os tipos estavam banzados. Expliquei-lhes:
Como manda a lei, é para vos pagar o que me ensinaram… - e foi aí que pela primeira vez me saiu aquela graça que o João César havia de afamar - Agora vejam lá, não o gastem em freiras.
medusa |
Estive meses sem tocar numa pileca. E se ao sentir-se o odor da fêmea as coisas podem entortar, aí deram para o torto. Tive de dar corda aos sapatos. Claro que por prescrição médica, rigoroso como sou em segui-las todas.
O melhor é recapitular. A cassete acabou. Aproveito e dou cabo de um Kentucky.
Nasci antes dos flippers tomarem a vez da catequese. Dedilhei o primeiro em Paris, num bar contíguo ao Museu Gustave Moreau, no princípio dos anos sessentas. Mas o meu tilt mental, corrompido pela maluqueira do Michaux e a voz de passarinho do Cesariny, já não se excitava na féerie dos pinos e nos ziguezagues daqueles abafadores prateados.
Porém, naquela noite, estava endiabrado, o último Simenon (no bolso) parecia-me uma inopinada merda, a aguardente escorregava, chovia lá fora, e o televisor onde, naquele momento, passava um documentário sobre o Bogey, ficava quase por cima do flipper. Decidi verificar a minha destreza, enquanto, num despique com a memória, me ia antecipando aos diálogos dos filmes. O Falcão de Malta:
SECRETÁRIA
Está ali uma rapariga à tua procura. Chama-se Wonderly.
BOGART
Cliente?
SECRETÁRIA
Acho que sim. Mesmo que não seja acho que vais querer recebê-la.
SECRETÁRIA
É uma brasa.
MOI
Manda-a vir querida, manda-a vir.
SECRETÁRIA
Faz favor, miss Wonderly.
MOI
O melhor era contar-me tudo desde o início e depois vemos o que convém fazer. Comece pelos dados mais antigos que tiver...
Era canja, sentia-me o ponto de Deus. Uma função para que sempre fui dotado, inda que o Grande Arquitecto raras vezes me tenha passado previamente a peça. Os flippers, aquilo é uma dança, um tango cuja condição prévia é pisar os pés da consorte, e à medida que as personagens repetiam as minhas falas, eu redobrava as palmadas nos comandos, nos flancos da máquina, as minhas ancas gingavam na toada das bolas, em saracoteios púbicos, deixem cantar o meu corpo eléctrico - o bónus era meu. Ouvi o Bogart, durante mais dois jogos, papaguear o que eu lhe ia ditando, sorvi a última aguardente de um trago, enfiei o borsalino, comentei com o Carlos (o dono da baiuca):
É o maior... se perguntarem por mim estou no Shangrilá. – E saí.
Há horas que chuviscava; nas paredes, empapadas, não se acenderia um fósforo, nem dos infalíveis da série B. Tive de ajeitar o cachecol e subir as golas do blusão. Não pude avançar muito, a carga intensificou-se. Valeu-me o alpendre de uma porta. O vidro estava partido, podia esticar o braço e acender a luz da escada; enquanto a chuva não parasse, ao menos lia. Faltavam-me dois capítulos para enterrar aquele triste Simenon.
Alguém gritava no meu ouvido. Um tumulto, o intercomunicador. Uma voz claramente feminina e ao fundo, pouco nítida, uma voz fanhosa, de velho, depois tiros, dois. Devolvi o Simenon ao bolso. Alcei a perna, passando pelo buraco do vidro. No vão da escada, tentei localizar o barulho.
Abriu-se uma porta e uma cabeça assomou no vértice do 2º direito. Não pareceu contente de me ver. Uma loura de cabelo à garçonne, bonita. Não extraordinária, mas digna de ser a depositária da orelha do Van Gogh.
Interceptei-a no primeiro patamar da escada. Grande plano da minha mão a prender-lhe o pulso fino, que imediatamente torço sobre as costas:
Onde pensa que vai, a dama do licorne?
Está doido? Nem o conheço.
Consolo-a com a sabedoria provençal:
A vida que tanto se contorce, perde-se entre quatro tábuas.
Num gesto intempestivo, fez-me cair o borsalino.
Largue-me. Está doido.
Mau. É a segunda vez que diz isso. A próxima é na esquadra.
Ela insistia:
Está-me a magoar…
Obriguei-a a galgar as escadas:
Vamos lá ver o que fizeste…
A porta estava escancarada.
Se não me deixa, eu grito...
O outro não te servia porque era velho, eu porque sou novo. Afinal quais são as tuas simpatias?
Eu grito. – repetia a bezerra.
Grita à vontade, não sou rancoroso...
Empurrei-a para dentro de casa.
A cena era pífia, de vulgar. Um homem, nos seus cinquentas, alto, volumoso, de costas para a porta, senta-se diante da televisão, num reles sofá de verga. Tem a cabeça encostada para trás, num leve estertor, como se ressonasse. De uma mão pende uma cigarrilha, acesa. Cobre-o uma manta. Na televisão passa um filme policial, português, e assiste-se a um tiroteio. Um dos agentes é mulher, e grita:
Anda cá, meu filho da puta, que eu mostro-te o que é uma magra com lebre.
Ela olha-me de soslaio, já de cigarro na boca. Recuperara o domínio da cena. Era mais alta do que me parecera. Diz-me:
Era isto que queria ver? Um pai bêbado que adormece com o cigarro aceso diante da televisão e uma... filha que se cansou de esperar pela sorte? É este o meu crime?
O auscultador da porta toca-me na perna, caído. Devolvo-o ao encaixe. Olho-a envergonhado.
Ela apaga a televisão, tira-lhe a cigarrilha da mão e esmaga-a no cinzeiro. Reparo aí que calça umas belíssimas luvas de plica. Eu enfiado. Avança para a porta, tropeça num fio eléctrico e faz tombar um candeeiro e uma jarra de um velho contador. Nem olha para trás, sai porta fora, no caminho da sua ira. Sou eu que apanho o candeeiro e alguns dos cacos. Cumprimento o belo adormecido com um aceno do borsalino, fecho a porta e corro atrás dela.
Dobrava a esquina. Segurei-lhe pelo braço, firme:
Desculpe, só queria ajudar.
Ainda se gaba?
Foi um engano. Não é capaz de me perdoar? Olhe, convido-a para beber um café.
Nem morta.
De repente, é tomada por uma tontura, tem um leve desmaio.
O Carlos ficou de pulga atrás da orelha quando me viu voltar, todo mesuras, no amparo de uma lasca. Sentámo-nos ao balcão, perto da televisão. Pedi um café forte para ela e um brandy para mim.
Tem de bebê-lo forte e com pouco açúcar.
Que parvoíce. Tenho comido pouco e dá nisto...
Eu é que tenho culpa, que a enervei...
Que é que está a beber?
Brandy. O mundo anda três bebidas atrasado, já é tempo de acertar...
A malinha dela estava quase a cair do balcão. Esbocei pegar-lhe mas ela antecipou-se. Passou-lhe uma sombra nos ombros castanhos, escuros.
Problemas? Pode confiar…
Diz-se na minha aldeia que a criança que cresce entre ervilhas habitua-se a pensar verde… Talvez eu tenha o hábito de criar problemas…- atalhou ela.
Deixou-me intrigado, com essa da aldeia. É de onde?
O meu pai, o meu pai é que é... é uma maneira de dizer...
Tem problemas com ele?
Desde que me conheço e devo confessar que esta noite se passaram coisas. Apanhei-o a ir ao dinheiro da casa, para gastar na bebida e no jogo. Já custa sustentar a casa sozinha. As horas que perco naquela maldita loja de lãs, em vez de estudar para as frequências. E quis-me bater...
Pedi um saco de amendoins. Quis ser gracioso:
Há-de ter mãezinha, a dama do licorne?
A voz lacrimejou-lhe:
Morreu-me à nascença...
Dá-me outro brandy, ó Carlos.
Para a distrair, apresentei-lhe o meu karaoke. O Bogart estava sempre em atraso. Ela animou:
Mas, você sabe os filmes todos de cor?
O cinema é a vida e a vida sabe-se de cor. Não sabe as características todas das lãs que vende lá na loja? Umas fazem mais borboto que outras e você conhece-as a todas...
Não sei... Comigo a vida é mais conforme as coisas rolam...
Olhe - apontei a televisão, galvanizado pelo meu êxito - O Ter e Não Ter.
Antecipei a Bacal:
Já sabes, quando precisares de alguma coisa, basta assobiar... sabes como se assobia? Põe-se assim os lábios e sopra-se...
Duas horas depois despedíamo-nos na esquina, eu já todo entornado nas curvas dela, a adivinhar passarinho novo. A minha mão não largava a dela:
Amanhã, passo lá em casa?
Amanhã não posso, já combinei com uma amiga. Depois de amanhã...
Vou sonhar consigo.
É tarde, o melhor é ires para casa pensares no que vais dizer à polícia...- Ela reproduzia a fala de um dos filmes…
É incrível, já apanhou...
Normalmente sou lenta, mas hoje estou assim...
Depois de amanhã, então?
Não falte!
Levo um nogat para o seu pai.
Em vésperas de passarinho novo vou sempre dar um desbaste na trunfa. Manias de careca. É uma espécie de talismã, sair para a rua polido, de coração polido, está a ver? A mesma barbearia de sempre, os invariáveis estarolas. Marretas já entradotes. Há vinte anos que lá ia. Já nem existe a barbearia, Barbearia Nacional, na Rua da Rosa. Logo que entrei notei o ar compungido de todos.
Dei os bons-dias. Nem uma palavra. O Afonso acenou-me com a cabeça, convidou-me a sentar-me na sua cadeira de barbeiro e colocou-me a bata. Mudo.
Então, como vai ser? – soletrou, num cansaço nunca debelado.
Como vai ser? Nem parece seu, Afonso. Em vinte anos nunca promovi a lâmina… máquina 1… E barba…
Atrás de mim, os reformados de sempre, calados como ratos. Meti-me com o mais pândego:
Então Sr. Campina, aprendizagem da pedra?
O Afonso espalhava-me o creme na cara.
O sr. João de Deus conhecia o Antunes, um tipo que costumava cá vir às quintas?
Não.
Às vezes ia com a gente para a pesca... um amigalhaço, um gajo forte, um pouco mais novo que nós, tinha sido comando... Morava na Capelo Ivens... Uma maluca qualquer que ele meteu lá em casa...era a tara dele... limpou-lhe o sarampo…
Na Capelo Ivens? - A coisa inquietou-me.- Quando?
Ele prosseguia:
Se calhar conhecia, não está é a ver o rosto. Vivia num prédio que a porta tem um vidro partido... um coração de ouro, mas sem os alqueires bem medidos. Aquilo foi a guerra. Punha as malucas todas lá em casa... a de ontem não esteve de modas e foi-lhe ao tesouro... Dois tiros, é pena, é uma vida humana, mas é assim mesmo... A polícia foi lá hoje recolher os cacos… parece que há indícios… A gaja foi descuidada…
Num flash-back, percebi que os indícios me pertenciam, as minhas impressões digitais naqueles cacos, no auscultador….
Veio-me o Bogart, em O Falcão de Malta, a explicar a Mary Astor:
Quando alguém mata o sócio de um homem, em princípio este homem tem de fazer alguma coisa. O que o homem pensava do seu sócio não interessa...
Comecei a sentir no pescoço a áspera lâmina do Afonso.
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