quarta-feira, 22 de junho de 2011

O AIRBAG DE DEUS

Hoje no café, voltaram a perguntar-me, E Deus? É a pergunta que regularmente me fazem, neste país de palmeiras, mangas, mesquitas e igrejas baptistas. Andam num tu cá, tu lá permanente com Deus, apesar da desordem manifesta no campo social e duma miséria irredenta e vivida num verdadeiro espírito de Job.Eu só me lembro da história que P. Jacob cita no seu livro O Empirismo Lógico, e que conta o seguinte: «O físico Szilard anuncia um dia ao seu amigo Hans Bethe que decidiu escrever um diário:-Não tenho a intenção de o publicar; vou simplesmente catalogar os factos para que Deus seja informado.
- Tu não achas que Deus conhece os factos? – pergunta-lhe Bethe.- Sim, anui Szilard, mas ele não conhece esta versão dos factos!».
Um Deus assim é que me convinha. Aliás, na esteira duma certa tradição herética cristã para quem Deus não se conhece a si mesmo e se busca no fazer e na iluminação do homem. Como se tivesse sido tomado duma monumental amnésia e só em nós, as suas sinapses, despertasse fugazmente.
Mas quem vive em África só pode acreditar em Deus por falta de imaginação. A superstição, a idolatria, e a violência estão tão mescladas com a indigência, a sordidez e o egoísmo humano e social, que Deus me parece profundamente injusto, idiota ou surdo, posta a vanidade dos apelos amplamente repetidos por milhões de bocas. De outro modo, com tanta entranhada, porque havia de ser esta paisagem humana tão fustigada?

cristina rodero
Todas as manhãs, no entreposto de chapas que existe quase à porta do meu prédio, vejo um paralítico andrajoso, sem carrinho de mão, que se arrasta sobre os braços e os joelhos, atirar-se do autocarro para a berma do passeio. Como se mergulhasse na piscina. Avalio o embate diário daquela carga de ossos na pedra. Nem sempre cai bem. No outro dia o seu joelho contundiu na esquina do lancil do passeio e gemeu durante uma hora. Depois vegeta pelas imediações, todo o dia, lançando olhares de misericórdia aos transeuntes para que lhe dêem esmola. É um quadro deprimente.
Perto, muito perto, fica a recém-inaugurada igreja da IURD, um edifício mastodôntico, com milhares e milhares de fiéis, que descem do chapa ali mesmo, a fim de irem ao culto. Nunca vi nem os fiéis ou quaisquer pastores da igreja se proporem levar aquele pobre diabo para o templo, para que ele fosse objecto dum desses milagres que passam todos dias na televisão e que ressuscitam o crocodilo numa montra de sapatos.
Passam por ele e não lhe tocam, não lhe deixam esmola, esgotados pelo dízimo, e não ousam imaginar – sob medo de não acontecer. Por que senão, o que os impede de aliviar o sofrimento deste homem? Que tremendo egoísmo os cega na busca de uma salvação privada, que não envolva o seu próximo? Cristo amou os leprosos, mas estes cristãos não, e ao contrário do que aparece nas televisões evangélicas, esta terra padece duma verdadeira carência de milagres. Dos autênticos.
À porta do Hospital Central, em Maputo, uma vítima de mina pessoal, sem pés, vende fita-cola. Não tem um sorriso beato na boca porque tinha o lábio fendido por um estilhaço que lhe rebentou também com os dentes. Ali perto também existem templos dessas igrejas novas onde campeiam os milagres a metro, mas nenhum desses fiéis imaginou sequer a possibilidade de que aquele homem gostaria de ser salvo, de ser preenchido pelo miolo da fé, exorcizado do diabo que planta machamba no corpo dele. Foi despejado pela igreja. Ninguém o leva ao conforto milagreiro ou o consola, tentando-o converter à sua confissão, se calhar com receio de que ele depois não seja assíduo no pagamento do dízimo.
À porta doutra igreja vi uma mulher a ser espancada pelo marido que dizia que ela estava penetrada pelo demónio e que se deitava com outros homens. O homem, rude, inarticulado, era claramente um idiota sem perdão, mas nenhum dos irmãos de fé ousou apartá-lo da mulher, porque aquele era “um assunto particular”, e como é sabido, a mulher foi amaldiçoada por Deus.
Creio que Sartre tinha razão quando defendia a necessidade dos homens começarem a ser responsáveis pelos seus actos, sem álibis ou entidades transcendentes que os alheiem de ser a verdadeira mola das suas escolhas.
Depois de cada um adquirir uma pauta de valores e de ser activo na responsabilidade social para consigo e os outros, se realmente sentir necessidade duma espiritualidade apegada a um rito ou a uma comunhão religiosa, why not?
Mas primeiro devíamos arrumar a casa. Enquanto tivermos o airbag de Deus pela frente e nas costas, suspeito que não cresceremos o bastante como pessoas para dedicarmos espontaneamente amor e respeito aos demais.       

Diane Airbus. Porque não é Deus platónico?


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