Os meus amigos começam a ceder à minha chantagem para participarem no blogue. A Susana é a primeira. Primeiro porque é uma estreia – apesar do seu extremo talento, e de ter muitas páginas inéditas, preteriu a escrita pelo ensino, durante décadas, e nos últimos anos voltou-lhe o bicho de enxurrada –, depois porque é a forma de celebrarmos o nosso reencontro, após 30 anos de afastamento. Fomos muito próximos aos 20 anos, quando eu publiquei o meu primeiro livro, e ela era uma pré-universitária. Depois ela foi estudar para Coimbra. Não comunicámos mais até há um mês atrás e foi uma alegria descobrir que ela estava «intacta» e com o mesmo brilho. Por isso os ovos da Páscoa vão para ela. E o melhor é poder anunciar que vou editá-la em Moçambique, na colecção que dirijo com a Teresa Noronha para a Escola Portuguesa. Fica para já este aroma:
Mote: um selo antigo, carimbado: Danzig, 1939; a lembrança da noite fria em Estocolmo; Andrei Rubliov, o monge das estepes; um email vindo de uma amiga da Polónia, a informar que a velha senhora, sua mãe, depois de tanto sofrer, descansa enfim na paz do Senhor…
Enquanto eu, sozinha em Estocolmo, dorida e meio surda por causa da constipação, escolhia os legumes para que o cozinheiro daquele pouco sofisticado restaurante mongol os grelhasse no barbecue, os meus amigos, noutra cidade da encoberta e obscura Suécia, comiam carne de alce pela primeira vez na vida.
Escolhi espargos. Nesse momento um deles mandou-me um sms a contar que a carne era doce, a dizer que nevava em Uppsala e a perguntar se eu estava bem. Também escolhi cogumelos chineses, poucos. Nesse momento, a amiga polaca enviava-me um sms, a partir dos subúrbios de Varsóvia, a desejar boa viagem e a lamentar que desta vez não tenha podido vir connosco. Se a reunião tinha corrido bem, se os dear boys já tinham partido para Uppsala, se fazia frio em Estocolmo. Escolhi cenoura cortada em tiras finas e couve branca. Outro sms respondia-me, à pergunta sobre a saúde da mãe, que não tinha melhorado, que a velhice e a doença a mantinham alucinada e presa à cama, moribunda.
Entreguei ao cozinheiro o prato com a minha escassa escolha de legumes ladeados por dois desengonçados camarões-tigre, absorta na lembrança do que a amiga polaca me dissera, enquanto passeávamos de braço dado pelas ruas de Bratislava: que a mãe era sempre a mulher mais bonita e elegante entre todas, onde quer que estivesse; que as mãos dela eram brancas e finas; que os olhos azuis escuros pareciam o báltico de onde ela viera; e que a história dela dava um filme.
O cozinheiro mongol remexe sobre a placa incandescente os legumes do meu salteado e a vê-lo, hipnotizada pelos movimentos ritmados, eu deixo-me levar pela fantasia aos alvores de 1939. Imagino a mãe que acaba de chegar à catedral da cidade de Gdansk, chamada na época Danzig. Imagino-a a benzer-se no escuro e a pensar: que será do nosso futuro, Senhor? A mãe lituana veste um vestido cinza claro de corte primoroso e leva um chapéu démodé em feltro verde. Caminha com um andar elástico e, apesar do isolamento, da agressão dos tempos e da lonjura, atravessa a guerra com elegância e distinção.
Este pensamento surge-me de improviso e prolonga-se. O cozinheiro entrega-me o salteado e eu vou sentar-me a uma mesa de canto, junto à janela. Lá fora, raros vultos, encolhidos, apressam-se para fugir à neve que branqueja no ar.
Não sei se me apetece ou não escrever a história, se me apetece o frenesim criativo nesta improvisada Mongólia, bem no centro da Gamla Stan, bem no coração de Estocolmo. Levo os legumes à boca e ardo pelo efeito abrupto do picante. Entre golos de água, minúsculas garfadas de fogo, bofetadas de neve, entre estações e aeroportos, entre quartos de hotel na cidades às escuras, entre golpes de febre e cansaço, entre a cidadã batida pelo Báltico e o meu canto à beira do mediterrâneo, escrevo. Escrevo enquanto a musa me apoquentar e escrevo para carpir os males de uma história de vida inglória e para homenagear a velha senhora que, provavelmente com distinção e elegância, se debate no leito com a morte que se lhe veio aninhar ao corpo.
Entre polacos e alemães, entre os acasos passageiro de que se faz a história, imagino a mãe recém-chegada a Gdansk, essa cidade transgredida que agora enquanto a imagino se chama Danzig. Não me custa muito imaginá-la enquanto ainda estou em Estocolmo, entre os legumes ardentes e a neve ventosa. O Báltico é o mesmo, o vento cortante deve ser o mesmo e ainda que a mãe esteja setenta anos atrás de mim, está sozinha como eu estou agora e espera.
A mãe chega à catedral de Gdansk, sozinha, inquieta, adoentada. Quando cheguei à Gamla Stan também vinha assim, febril e com dores de ouvidos. Procurei o calor nas ruas, no deslavado brilho das recordações chinesas para turistas, nos cornos de viking em plástico reles, nas T-Shirt I love Stockholm, nos pisa-papéis com forma de globo, água lá dentro e cristaizinhos de papel metalizado. Viro e reviro o globo e a neve delirante cai do céu submerso da Suécia sobre uma cidade presépio em plástico à prova de água e parece que se ouvem anjos flutuantes a tocar cornetins lá dentro do pisa-papéis made-in-china.
Fora de moda, fora de contexto, mas na sua essência, cheia de carácter, a mãe de andar elástico caminha no país estrangeiro, em Danzig, deixa-se trespassar pelo vento e pela noite e pensa: que será de nós, Senhor? Na Polónia anexada não há souvenirs nem montras iluminadas. Há lojas vazias, senhas de racionamento, gente deprimida, judeus escondidos e outros mortos. Os cristais de neve abatem-se sobre as gentes como pedregulhos e o som dos anjos é afinal o das bombas a deflagrar.
E se eu fosse imigrante em Estocolmo como esta lituana é em Danzig? Se eu não estivesse de passagem, a fazer tempo para a madrugada, para o autocarro, o avião, o ir embora daqui a meia dúzia de horas? Ou se eu fosse como esta mulher asiática que me explica num inglês arrevesado como nos devemos servir do barbecue ao estilo mongol? Pedi-lhe que escolhesse os legumes por mim e vi-a retrair-se como se lhe pedisse um crime. Que não escolhia!
Escolhi eu então, contrafeita, e daí a pouco queimava-se-me a garganta com os legumes ardentes, pedi sopa a correr e a sopa chegou bruxuleante e à primeira colher vieram as lágrimas por ser tão intenso o paladar picante. E foi assim que se me curaram os males de Inverno de Estocolmo e se invocou a musa. Escrevo, e continuo a cometer os erros que cometem os imigrantes: o que escolho é picante a mais, agridoce a mais, cru a mais. Sinto-me perdida e escrevo. Congestionada pelo frio do báltico, com a garganta a arder, deixo-os entrar, atabalhoados, os pensamentos já com setenta anos.
A mãe lituana! Penso outra vez nela. Deste lado do Báltico, Estocolmo. Do outro lado, mais abaixo, Klaipeda, o condado onde nasceu esta mãe. Mas ela está longe. Vai a passo largo em direcção à Bazylika Mariacka, a catedral barroca de Danzig, como então se chama a cidade, sob ocupação alemã.
1939.
A mãe passa pelos carros de assalto alemães, cruza-se com a multidão desordenada, fecha os olhos para não ver a devassa a que este povo está sujeito. À sua frente, agora mesmo, um rapaz cai de bruços, o sangue escorre para o chão e mistura-se com a neve e a lama e tudo se derrete. O soldado passa as costas da mão pelo nariz, funga, respira fundo, esfrega a espingarda na barriga, vira as costas ao cadáver e afasta-se. Ela continua a andar a passo elástico, escondida no seu elegante chapéu verde, um verde sem simbolismo, nada de esperança ou afins, seria uma ideia muito debotada, para não dizer hipócrita, em tais circunstâncias…
Entre gritos e estertores, o rodopio da multidão, as falas polacas aflitas, vai uma idosa arrastada na rua pelo braço. Cai, grita. Uma voz judia. A mãe desvia os olhos. Eu também, não quero testemunhar. Com olhar húmido, não sei se por causa da emoção se pró causa dos espargos picantes, volto a interessar-me pelo chapéu verde. Não sei o que vejo nem o que devo contar.
Seria mais fácil se houvesse aqui a consistência do vivido, ou a segurança de uma história que nos foi contada com a determinação de quem a viveu. Não tenho a memória nem a escuta. Esta é uma fantasia feroz e irracional. Não a posso sustentar na ordem. Prossigo às apalpadelas, a ver por onde seguem os passos da mãe lituana, agarro-me à imagem abrigada do chapéu verde e nada mais me interessa, porque quero desviar o olhar da agonia da multidão violada, da criança que chora no meio da rua, do bruto ressoar dos tanques, cadavéricos. Dentro de um deles, o soldado alemão canta a canção Lili Marleen.
O chapéu verde? Onde está o chapéu verde? Quero desviar a atenção desta mortandade, das filas de gente assustada no outro lado da catedral, gente enregelada de frio e terror, empurrada à força de coronhadas pelos SS, não quero ver mais mas não posso deixar de ver homens e mulheres a ser metidos como gado nas carrinhas de caixa aberta, uns sobre os outros como gado, como coisas sem existência ou dignidade que mereça misericórdia e lá vão a caminho do recentemente inaugurado campo de Stutthof, a poucos quilómetros dali. Não sei quem são eles. Esta gente são judeus? Se são judeus a mim parecem-me gente, talvez lhes distinga os traços do báltico, mas mais que isso não, são gente apenas, que será do seu futuro, senhor? Pensa a lituana, benzendo-se e estugando o passo.
Persigo o chapéu verde. Ela entra na catedral e eu vou atrás dela. Lá dentro, gente lívida enche de súplicas as paredes, as colunas de pedra esculpida, os detalhes barrocos. As mulheres tremem e as crianças choram e é tão instável o momento que até a catedral parece que abana, movida pelos estertores do povo agonizante. Irreprimível sinfonia de horror dirigida ao altar. Perco-me neles, nas crianças, no medo dos rostos, na súplicas. Onde está ela? Não a encontro. Onde está ela? Ah, ali, vejo-a de novo. Aproximo-me.
Vejo-lhe a mão direita. Tão atenta estava ao chapéu, ao ondular do vestido cinzento de andar elástico, que ainda não tinha reparado neste pormenor. Ela tem algo na mão e eu quero chegar mais perto, é importante saber o que é isso na mão dela, pensamento supersticioso, bem sei, tão absurdo como os tiques obsessivos. É estúpido. Como se saber o que o condenado leva na mão quando vai para o cadafalso pudesse aliviá-lo do destino. Mas que leva ela na mão?
Ocorre-me Andrei Rubliov, a imagem da catedral devastada pelo saque dos mongóis. Lembro-me da sua protegida e lembro-me de como é fácil levar um homem de artes e espiritualidade a matar. Um santo que mata por causa de estar entre o amor e a falta de fé. Ele matou, Andrei, o monge, o filósofo, o pintor de ícones… Séculos depois, entrei num desses imponentes edifícios brancos do Kremlin e vi os ícones de Rubliov e percebi que é impossível soltar deles o olhar. Se chegamos a desviar o olhar não é por querermos, foram os ícones que se fartaram de nós.
A catedral de Gdansk imagino-a do mesmo modo que à do Rubliov, a mesma cúpula enorme, e quase tão grande como a de Colónia, de se ficar abismado pela altura, de fazer tonturas. Lá dentro, o sofrimento das pessoas não as deixa ver os ícones, pena que o sofrimento do povo lhe roube a contemplação da arte, ao menos que vissem Deus, que se inundassem nele, ou que se afogassem nele, como diria a Maria Zambrano.
A mãe reserva a última réstia de energia no punho cerrado. Foquemos esse pigmento da imagem, como se estivéssemos a observar o pormenor de um retábulo que passa a todos despercebido, a menos que sejam loucos ou sábios. O lugar onde está a mãe? Pertinho do altar e dos santos de pedra escura, encostada a uma coluna de pedra onde está pendurado um quadro de Rubliov. Olhamos para ela de alto a baixo, mãe lituana. Primeiro o chapéu verde. Depois o vestido elegante que já não é como o vi primeiro, passou de um cinza claro, de uma textura em espinha de peixe, para o que agora, estranhamente, me parece ser um tecido grosseiro e avermelhado. Um chapéu verde e um vestido escarlate!
Olhemos com mais atenção para a mão, para o punho cerrado. Ainda estamos tão surpreendidos pela beleza do rosto que se torna difícil concentrarmo-nos devidamente no punho fechado. É realmente uma mulher bela e elegante. Ficaria bem em salões de baile, em Paris, a fumar cigarrilha como Tamara de Lempicka, vampíssima e a dizer frases espirituosas aos pretendentes suspensos do seu sorriso e da benesse de um olhar. Mas à lituana calhou-lhe a má sorte. Nada de olhares melífluos, poses de salão e ditos espirituosos. Ela encontra-se imigrada em 1939, está perdida de medo junto ao altar da Bazylika Mariacka e lá fora é o abismo da invasão de Danzig e a pequenez humana.
O que ela tem na mão? Esperemos.
A lituana agacha-se, deixa-se escorrer pela pedra, fica acocorada no chão, escurece, apequena-se, parece ainda mais perdida. Finalmente, abre a mão e vemos o que escondia nela. Uma carta. Ela abre o envelope, lê a carta e depois deixa cair o envelope no chão da basílica e deixa-se cair também. Que foi? É então que vemos que o branco do papel se tinge de sangue. Percebemos que a lituana foi agredida. Um homem fardado, debruçado sobre o corpo da lituana, atira a arma ao chão e prepara-se para fazer nela obra do diabo. Sempre houve disto nas guerra, todos sabemos. Que é a guerra senão o estupor da violação colectiva?
O envelope, o selo. Danzig, cidade alemã, 19 de Setembro de 1939. O tempo ficou parado num selo de correios, enquanto o sangue escorre e a mãe lituana é invadida na profundidade do seu corpo. O homem colossal agarra-a pela cintura e despoja-a de dignidade. É como o outro, o mongol. Os homens da guerra que são afinal senão a face oculta da humanidade? O selo tinge-se de sangue e o envelope escurece e não chegamos a saber quem escrevera a preciosa carta.
A língua arde-me mais ainda e custa-me muito respirar como se os legumes fulminantes me estivessem entalados na garganta. A guerra custa a engolir por muito que já tenhamos vivido e mesmo que quando escrevemos é como se fossemos bem maiores que o mundo, vê-se tudo do alto e as coisas ficam noutra proporção, mais digeríveis, mas a guerra, senhores, a guerra custa muito a engolir.
Eis que me surge de dentro da memória colectiva um santo renegado, um Andrei Rubliov rebelde, um pobre homem a debater-se na luta ácida entre a fé e a falta dela. Este Andrei que vem a mim, inesperadamente surgido no fluxo imaginativo, parece-me polaco, mas podia ser russo, lituano, croata, sei pouco dessa gente, o que me disserem que ele é, acredito. Ele ergue um machado pequeno como uma adaga, sulca com ele o ar da Bazylika Mariacka e derruba o invasor. Foi para fazer justiça que ele me veio à mente. Eleva-se um cheiro forte a incenso e sangue. Felizmente, o sémen estava podre e não vingou no ventre da mulher. Engulo os legumes finalmente, a garganta desbloqueia-se, valha-me deus, deus me perdoe, respiro de novo.
Antes de sair desta retrospectiva imaginária, e para que conste, digo: o anjo vingador, um engenheiro refugiado parecido com o Andrei Rubliov, viria a ser nomeado, já depois da guerra, responsável pela reconstrução da basílica. O seu sémen é viril e vivo e assim se fará pai e assim surgirá aquela com quem, meio século depois, passearei de braço dado nas calçadas irregulares de Bratistava.
E o tempo passou-se. Há cicatrizes que não se podem dissimular, mágoas que se tornam crónicas, que ora vão ora vêm, que deflagram quando menos se espera. Dores são dores em todo o lado. Como o amor. Como os sorrisos. E que não fique nenhum mal estar, que a história acabe em bem. Vejam como vai bela, uns anos depois, toda vestida de branco, a lituana. Sorriamos, como os restantes convidados, por ver o amor triunfante, o beijo na catedral de Gdansk.
A catedral foi reconstruída, o tempo vai passando e algo nos faz ir ficando, novas raízes que se criam, uma nova língua que se aprende, filhos que nascem polacos, uma nova pátria que se aprende a amar. Polónia, que depois das agonias da invasão e do fervor da libertação, nunca mais deixará que lhe mudem o nome: Gdansk é, Gdansk será.
***
Mais histórias amiga?, perguntam vocês. Que culpa tenho se a memória colectiva me entra assim adentro sem pedir licença? E ainda falta perceber, mas como vos posso explicar se eu própria não sei, como veio parar a Estocolmo esta mulher da Mongólia e porque foi que entrou de figurante num filme engalanado pela alusão a Rubliov. A ela, à mongol, acho-a mais dentro do realismo soviético que a ele. Ela não faz escolhas por mim. Que não, eu que escolha, eu que sofra se escolher mal, eu que decida até onde ir nos caminhos da memória colectiva. Eu que me aguente se o passado europeu está tão cheio de vulnerabilidade. Que eu sofra isso, porque havia de ser ela a sofrer por mim? Mesmo que seja num texto emaranhado, de vez em quando cabe-me emigrar também e saber como elas doem. Pago a conta, agasalho-me e saio para a neve. Levo na mão um postal ilustrado, Gamla Stan em dia de sol, já tem selo e tudo, a ver se não me esqueço de pedir no hotel que mo mandem para o endereço da amiga polaca.
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