Ando a preparar uma mudança de casa, o que dá sempre uma volta profunda a papéis e cadernos, para poupar no peso e na tralha a levar. E redescobri dois cadernos ao fundo da despensa que continham vários esboços do meu confrade OZO (cf. post de Fevereiro, Derrotas Sexualmente Transmissíveis, sobre a origem deste amigo que me coabita a sombra). Aqui vos deixo estes inéditos de Ozo. O poema final é político, um da dúzia desse género que o camarada produziu. As fotos são do josé cabral:
ELVIS HOME
1
Tem o semblante de uma tristeza
que nunca conheceu tômbola,
nem em sonhos,
e viu
seis cavalos tártaros
urinarem
sobre o único óvulo que semeou.
3
De cabeleira verde,
irradiava tal esplendor
por entre a fumaça e o tilintar
dos flippers que aquele enorme
ziguezagueante balcão
pendia
da sua luva
ama-
re
la.
4
Quando a despi
no vértice que crisma
a noite, no lugar
onde as águas se juntam
ao sorvo das éguas
e as pernas se abrem,
loquazes,
tinha um donuts.
5
Ainda se o bigode fosse a mielas
mas era só dela
a tipa era mão de vaca e não
emprestava nem um bocadinho
ao mano,
uma cara encovada
e sem um pêlo para amostra,
como um cu
enfiado em si mesmo.
6
Pega no giz com a ponta dos dedos
e fá-lo chiar na cabeça do taco
depois flecte as pernas num trapézio,
enquanto o cigarro ao canto da boca
esborrata o batom.
Eu embico no brandy
e reflicto: sem pressão
o cérebro
amolece
e o tempo relaxa-se
como dois seios sem soutien.
MÍNIMA MORALIA
“Eu, que sou montanhês, sei o que vale
a amizade da pedra para a alma.”
Leopoldo Lugones
1
a pedra do meu sonho
acordou comigo,
ao meu lado na cama.
e, o que é espantoso:
deslembrada.
7
Perséfona em pó.
Medeia em cristais.
Lésbia em pomada.
quem pega
nestas matronas?
na minha rua
só o vento sabe latim,
e grego sequer as sombras.
9
“um homem baleado
morre quase sempre por
envenenamento de chumbo.
se não for em excesso
a bala é quase inofensiva”.
insistia o Gilinho
a rilhar o tremoço.
12
na primavera, se acaso
estivessem desocupadas,
as mãos sondavam o primeiro
falo que encontrassem
engomado –
falo de formigas
que não se privam
de ser
obreiras.
16
- o nevoeiro desponta
quando a Nossa Senhora
repousa os seios
em terra.
- tens a certeza?
- pelo menos foi
o que a minha mãe
me disse.
17
se conseguires encostar
a orelha à tua sombra
ouvirás o mar
mas tem de ser
com os pés no ar.
18
‘antes de ti o meu corpo
estava cego
como a lâmpada que nunca
conheceu casquilho’.
20
aos vinte: esfregamo-nos como martas,
criamos filhos traquinas
e vivemos felizes para sempre.
aos quarenta: maceração íntima,
chega-se a tua pele à minha mão
como um trovão que se afasta.
22
o silêncio?
faz tempos que não o vejo.
24
era como se eu afogasse
a pedra na mão.
Podia lá imaginar
que o olho dele também
não sabia nadar.
25 (os sítios indevidos)
- senhor juiz, no momento
foi impossível furtar-me
a medir trinta passos
na vereda estreita do sexo dela,
que aliás se dilatava à passagem.
- e o senhor não ouvia o culto
no santuário do Cristo Rei?
- estava vento e o arvoredo
só me deixava ouvir
uma briga de andorinhas.
29
ir a despacho
no teu peito nu:
a promoção que as íris
tanto aguardaram.
31 (explicação)
a corça
que naufragou
nos meus braços
não me torna
infiel.
havia uma disposição
da natureza,
um grumo de nostalgia.
como um mau-olhado
que era preciso
extirpar.
ate gozei
com culpa,
eu seja ceguinho!
41 (ouvido no café Branca de Neve)
‘Xai-xai, a minha terra, ficou
de tal modo coberta com as cheias
que se afogaram as antenas de televisão.
para Deus será um pequeno refluxo,
para os meus pais foi maior
que a etimologia do Diabo
e suicidaram-se, ela
de bronquite, ele de débito.
quem adivinharia que Xai-xai
era um nome hemorrágico.’
42
deposto. o olhar
sobre a bica.
icemo-nos
à boca dela.
47
o sujeito é o homem
que inverte
o boato em carne:
roubado de um teste.
48 (um cabo-verdiano, antigo emigrante nos States)
‘sou poliglota de ascensores.
no mais sou ignaro.
mas nem o Pessoa, que era muitos,
conheceu tantos elevadores como eu.’
49
do tornozelo aos ilíacos
é perfeita. e aí encaixam-se
duas torneiras que só repelem
quem não gosta de água.
50
desencaminhada.
a estrada é um ermo.
a noite podia perfeitamente
roubar-lhe de esticão
tudo o que tem
mas prefere passar-lhe
a língua no bulício
das nádegas, nas coxas,
cujo ébano mergulha
o escuro em jardins
suspensos.
e eu,
à janela, roído
de inveja.
57
abomino os poetas que quando escrevem
meu amor apõem de imediato meu ódio
o amor não é uma vergonha nem um mérito:
a chuva que se precipita na rampa
raramente sobe. e o ódio é o vício
de um especialista que se tornou
jornalista. tomba neste momento
o opus 45 para chuva, vento e jacarandá.
58
não é inverno,
é prosa.
59
a congeminada artrite das palavras,
a sua mordedura,
cálida,
e por vezes absurdamente
tolerante,
leva-me a confiar
mais na escalada dos teus seios.
60
não te sigo. vou
no mesmo caminho.
mas de árvore
p’ra árvore
as minhas raízes
nomadizam-se.
63
repuxei o lábio a pedir-lhe
não te vás. felizmente
mostrou-me que a decepção
tem folha perene.
agora nem morta voltará
a infiltrar o mindinho
entre o meu prepúcio e a glande.
64
o que eu desejaria que perdurasse?
a nudez, no interior da razão.
um viático que não exigisse
um saldo de vilanias, que a crispação
do hip-hop aceitasse o caminho
de água do jazz, e que nada
aplanasse o odor de outro corpo.
66
instrução
para surdos-
-mudos:
leiam
em
braille.
67
o esgalgado galgo
da florista
é desossado
em corrida
e não
chega a gozar
o silêncio
da chuva.
68
a mão dele, que tresandava
a tangerina, afagou-lhe
a cabeça e depois os seios
como se – avaliada
a redondez da copa –
sopesasse os frutos.
70
empanturra-se de ostras
e arrota baixinho.
só os pobres podem
olhar o céu
com interesse.
essa ervilhaca
a que chamas alma
é como a raspadinha,
mínima moralia:
o mais fugaz petisco
traz o vício.
A VIA HERÉTICA
Que Deus me perdoe mas
o caule desta imperial lembra-me
o antebraço de Nossa Senhora
e o ouro da sua energia,
fluida,
nas frinchas
do Seu Amor.
Que Deus me perdoe
mas a base do copo
lembra-me uma glande
que uma lanceta
vitrificou
e quando o elevo e rodo
observando-lhe a transparência
assalta-me a visão
daquela pila
de urso,
num filme polaco,
O MONSTRO,
que à vista
da mínima réstia de tornozelo
duma condessa
que tomava banho
no sangue das cem virgens
que mandara matar,
pulsava
expulsando num jorro
a Via Láctea,
que Deus me perdoe
as coisas que me ocorrem
matutando
n’Ele.
Sei encontrar os nexos
mas não multiplicar os anexos,
a ponderosa cheta.
a ponderosa cheta.
Jura um amigo que o dinheiro é fêmea
e faz várias ninhadas por ano,
há-de confundi-la c’a chita
- se também ele defraudou a sorte!
mas conheço centenas que incapazes
de fazer um nexo
fazem trilar a chita
com promessas de grilo.
Perdão, a cheta,
O que me enoja no arranjinho, na auto-estima
da calinada, no implícito ao fundo
do mais reles esquema,
é a escalada da luva,
proporcional
à escala
à escala
da ignorância sobre o ADN:
um grilo não fecunda uma cheta,
a mentira não torna menos pretos
os sapatos brancos do janota.
Algo tremendo penetrou na minha vida,
uma lente que não faz ver
mas na verdade acende o olhar
- tramou-me.
Escreveu o Maquiavel, um man
de poucos amigos:
a ideia é quebrar o real,
confundir os sentidos,
desmoralizar as aparências,
e o ilógico é o segredo de uma ordem
que se exprime em segredo.
E fascina-me o descaro
com que dos ossos se faz gelatina
e se lhes escarra o tutano,
esvaziando os sentidos,
em nome do mais brutal fake
- que a mola se chame metical,
é um exemplo.
Ah, a desrazão geométrica!
Eu sei como se cede
e se enrolha a honestidade,
sei como mente o asno amarelo,
como se perde a vergonha nadando à cão,
sei os trilhos onde os habilidosos
depenam os flamingos
para prometerem petróleo
ao povo,
e como se devolve as palhaçadas
com a putrefacção do riso.
Eu sei, é tão fácil agarrar uma ilha
pelos cornos da administração,
com luvas de veludo,
ou fazer de um porto o viveiro
para as minhas rãs.
Foi sempre claríssimo para mim
que estamos juntos na manha,
no relax, don´t do it,
falta-me é o sangue mafioso dos italianos,
e o inescrúpulo de Shaka
- tenho ossos de borboleta.
Só isso um pendor demasiado humano
para fazer dos princípios trapézio
afocinha-me no asco,
e fragiliza-me o humor
quando me caiam a sombra
e me oferecem pulseiras de cobre para o bio-ritmo
e um fô by fô para calar a opinião
- arre, tenho sangue de borboleta.
De que reino é a mole formada na pedra?
A sua noite anda a oeste,
florescendo a alba a sul – como é
grande o embaralhamento dos pontos cardiais!
E em que lento desapontamento deixei eu de saber dançar
conforme a música?
Em que farol capotei o carro?
Ai Mbique, a perda de realidade
não só compra como pode dar lucro,
e coitado de mim que faço os nexos
e tenho ossos de borboleta!
Muito bons os poemas de Ozo
ResponderEliminarCruz credo!
ResponderEliminarOs leitores do Desinformação Seletiva já foram devidamente alertados por mim:
"Tirem as crianças da sala, lacrem com piche bento o fiofó dos cães, do papagaio e das piabas!
António Cabrita soltou há pouco na praça uma oceânica récua de poemas do nefando Ozo!
Corram logo a lê-los ao Sul*, antes que as Raposas busquem abrigo na puta que pariu!"
Beijos
Li alguns lá no Desinformação Seletiva. Vim aqui conhecer mais. Às vezes é uma sensação (estranhamente gostosa!) de pedra atingindo em cheio a face.
ResponderEliminarMarcia , que bela coisa exacta que voce disse!
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