Quando eu era miúdo e o meu pai me acordava cedo com um carolo (o que nele era um sinal indelével de carinho) para o acompanhar pela aragem da madrugada a catar junto às rochas dos molhes a minhoca para a pesca, encontrávamos sempre um homem de suiças e galochas, a foçar nos mesmos lugares, e cuja presença deixava o meu pai bem-disposto, em sorrisos enigmáticos. E em sussurros explicava-me, dezenas de vezes mo repetiu, que o “artolas” levava o dia a pescar, a falar aos peixes e a lançar à água o pescado. Era como um guarda-redes que só gostasse de golos bonitos.
Não sei porquê, mas na minha cabeça, decalco nessa figura a projecção do António Porchia (1885/1968), um argentino secreto, sibilino, que só deixou um livro de aforismos, Vozes, mas sobre quem tanto o Borges, como o Juarroz, o Cortázar, como o Gombrowicz, o Breton, o Henry Miller, ou o Roger Caillois, que o traduziu para francês, falam com extrema veneração, como se tivessem encontrado um pré-socrático a levitar sobre um imenso açougue. Para mim é recomendação que baste.
Tendo eu achado o caderno onde comecei a traduzir o Porchia, aqui vos deixo, um primeiro paiol de vozes:
Quem viu tudo a esvaziar-se, sabe de que se enche tudo.
O homem não vai a nenhuma parte. Tudo vem ao homem, como a manhã.
Um pouco de ingenuidade nunca se aparta de mim. E é ela quem me protege.
Abre-se-me uma porta, entro e dou de chofre com cem portas fechadas.
O mal de não crer é crer um pouco.
Se eu fosse como uma rocha e não como uma nuvem, o meu pensar, que é como o vento, deixar-me-ia.
Creio que são os males de alma, a alma. Porque a alma que se cura de seus males, morre.
Muito do que deixei de fazer em mim, continua a laborar em mim, sozinho.
Às vezes estou como num inferno e não me lamento. Não encontro de que lamentar-me.
O homem quando é apenas o que parece ser o homem não é nada.
Cem homens, juntos, são a centésima parte de um homem.
Quando o superficial me cansa, cansa-me tanto que para descansar preciso de um abismo.
O mistério apazigua os meus olhos, não os cega.
Quando a tua dor é um pouco maior que a minha dor, sinto-me um pouco cruel.
Falo pensando que não deveria falar: assim falo.
A flor que tens na mão nasceu hoje e já tem a tua idade.
Uma asa não é céu nem terra.
Temos um mundo para cada um mas não temos um mundo para todos.
Nada termina sem romper-se, porque tudo é sem fim.
A razão perde-se raciocinando.
Olhando as nuvens vi que o meu pensamento não tem o seu corpo atracado ao meu corpo.
Maior pranto que o de chorar é ver chorar.
O homem é ar no ar e para ser um ponto no ar precisa de cair.
A tua mão me basta, porque me cobre todo e não é transparente.
Quem permanece muito consigo mesmo, se envilece.
O ir a direito encurta as distâncias, e também a vida.
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