quarta-feira, 20 de abril de 2011

SENTIMENTO DA NEVE: PANERO E EU, 1


Em 2001 fiz estas traduções de Juan Luís Panero, com a Teresa. Em Portugal saiu numa edição da Fenda, e em S. Paulo saiu pela Llumme. Deu-me um grande gozo escrever o prefácio, pelo que o transcrevo, como introdução:
 

«Solo son tuyas – de verdade – la memoria y la
muerte.»
Juan Luis Panero

É difícil prefaciar o que não estamos certos de ter entendido, como a sensação, refractada num copo de whisky ao balcão de um bar manhoso de subúrbio, de que a melancolia, hoje, mais que uma afecção, não passa de uma gasta moeda de bolso, enquanto o vento lá fora sacode os plátanos e celebra a força inalterável dos elementos; o que nos obriga a ir fundo no copo, na ânsia de uma âncora; de um despojamento que só a idade dá. Ou como o traço das desapiedadas mãos do tempo nesta poesia crepuscular de Juan Luis Panero. 
Mantenho com a poesia deste poeta espanhol relações de intermitência e perplexidade. Primeiro li de um jacto o seu Galeria de Fantasma (Visor, 1988), que me agradou ao ponto de no mês imediato ter oferecido dois exemplares. Depois, comprado o volume da Poesia Completa, 1968- 1996 (Tusquets), pelo contrário, invadiu-me o torpor e o enfado e esqueci-o nas filas de trás das estantes, enquanto debicava no irmão mais novo, Leopoldo Maria Panero, um flamejante poeta irregular de voz e rosto talhados por torrentes vulcânicas e «um maldito à maneira» - a quem não falta a compulsão satânica.
E nesse precipitado primeiro juízo o meu desafecto nunca conseguiu assimilar as causas do frenesim dos poetas espanhóis dos anos oitenta e noventa por Juan Luis, a quem repescaram de um relativo obscurecimento, transformando-o numa figura de culto. Até que o modo enfático como Joaquim Manuel Magalhães se lhe refere, no prefácio à sua antologia de poetas espanhóis, me levou a “conceder-lhe outra oportunidade”. Desde então erra o livro entre o tampo e as gavetas da mesa de cabeceira, sem que eu alguma vez tenha conseguido captar com nitidez a raiz do seu real magnetismo. Suponho que acabei por traduzir Juan Luis Panero para divisar onde, entre o firmamento e o horizonte, está a sua linha de equidade: a sua fugaz mas inescapável sedução.
Lembrava, Wallace Stevens: «existem diversos graus de imaginação da mesma forma que existem, por exemplo, graus de vitalidade e, portanto, de intensidade. O que supõe implicitamente que há graus de realidade» e obriga a que o ar circule. Aliás, o ar convém circular, pois como se diz na estética japonesa, a boa poesia é como a seda, quer dizer lisa, elegante, mas a poesia suprema é como o papel – ordinário, deve manter uma certa rugosidade.  Ora, a rugosidade de Juan Luis Panero acotovela-se em janelas exteriores às minhas paisagens naturais - prefiro os vendavais que se desatam em Hugo Claus, Gonzalo Rojas, Fátima Maldonado ou Jorge Riechmann à poesia com airbag, de que Philip Larkin ou os cultores da «poesia da experiência» em Espanha podem ser exemplo. O que me levou ao vagar de traduzi-lo? O seu grau de realidade interpelava-me, mexia com os meus ecos e fantasmas, apesar de sentir que navegamos em sistemas neuropoéticos muito dissemelhantes.
Reveja-se o que vaticinava Octavio Paz numa carta dirigida a Pere Gimferrer, « Creo (...) que para usted la lenguaje no es algo dado (...) sino algo que debemos rehacer cada dia. Algo que inventamos diariamente – y que diariamente nos inventa. Me explicaré: Cernuda, poeta al que admiro, se servía de las palabras para expresar o desentrañar sus conflictos y sus visiones. El lenguaje era un instrumento para crear objectos verbales (poemas) que fueram asimismo declaraciones espirituales o psicológicas. Para un poeta como Huidobro, para escoger el otro extremo, el lenguaje en sí mesmo (...) es ya un conflicto, un problema: no se sirve de las palabras, sabe que son tan reales (o irreales) como las árboles, las casas, los aviones y las pasiones: son su ser mismo y lo que no es su ser, su vida y aquello que lo será siempre ajeno. Huidobro o la pasión del lenguaje; Cernuda o la lenguaje de la pásion. La actitude del chileno, mas allá de toda odiosa comparación sobre los «méritos» poéticos, es más radical. Es crítica y creadora: al enfrentarse con el lenguaje se enfrenta con los fundamentos mismos del mundo. El mundo no es lo que vimos, ni, sobre todo, lo que decimos. Para decir el mundo hay que inventar otra vez todo el lenguaje – todo el mundo que es un lenguaje».
Esta distinção parece-me reflectir o debate que a poesia, sob diversas máscaras, tem travado no seu seio. De modo grosseiro tracemo-lo assim: de um lado, na senda de Mallarmé, a necessidade de encontrar na linguagem um substituto do sagrado ( Mallarmé tenta resgatar a linguagem do seu condicionamento material, da sua funcionalidade, construindo uma rede que “pelo isolamento da palavra” a vivifica e traslada para o “canto”; investindo-a de um halo inaugural), de outro lado o objectivo não tanto de investir o mundo de significação como o de capturar as coisas na sua presença individual e momentânea. A que ao longo do século – com as devidas excepções em cada tradição - corresponderam os modelos francês e anglo-saxónico.
Juan Luis Panero é poeta que medrou nesta última orbe - tal como Cernuda, uma outra sua influência confessa; mas repita-se que a tipologia avançada acima é geograficamente redutora, e bastaria atentar na proposição que Juan Luis atribui ao espanholíssimo  Juan Rámon Jiminez: «Inteligência: dá-me o nome exacto das coisas!».
A obra de Juan Luis Panero, pelo seu tom pessoal, que não teme resvalar para a confessionalidade, partilha experiências directas, particulares ou locais e atém-se ao uso humildemente referencial da linguagem. Panero pertence assim, na distinção apontada por Paz, à linhagem dos poetas para quem a linguagem é um instrumento para criar objectos verbais (poemas) que são inegáveis «declarações espirituais ou psicológicas».
A falar aqui de um sentido, é da relação com a coisa-mesmo que ele se quer emergido, mesmo quando mediatizado pelas menções culturais. A poesia, neste caso, reflecte um vínculo e opera como a chave que vivifica e intensifica a experiência da vida, não ergue uma metapoética. Ao invés, Juan Luis Panero abdica de qualquer esteticismo, de veleidades lúdicas ou experimentais; nem faz da cultura «modo de emprego», tecido verbal ou material para colagem: processos que vingariam nos poetas da sua geração cronológica (Panero lançou a primeira recolha, A Través Del Tiempo, em 1968), a dos Novíssimos, ou Geração da Linguagem, e que teve em Pere Gimferrer e Guilherme Carnero figuras de topo. Essa atitude acabou por retardar o seu pleno reconhecimento, pois durante anos Juan Luis Panero foi considerado um “compagnon en retard” dos poetas da geração de 50 e “tapado” pelas ubérrimas afinidades que a sua poesia manteria com as de Jaime Gil de Biedma e Francisco Brines.
«Máscaras e Mitos» se chama o livro de crónicas em que Juan Luís Panero dá azo aos seus exercícios de admiração, levantando, numa espécie de cartografia de «sonhos, heróis e fantasmas», o seu século e as balizas do seu gosto. E às tantas, ao resgatar Max Ophuls do reino das sombras, o poeta cita o cineasta:«Eu creio firmemente que quando se começa a rodar uma película não devemos propor-nos criar uma obra-prima, trata-se simplesmente de dar o melhor de nós, de ter em conta as propostas dos poetas que nos precederam e de fazê-lo o mais simples e directamente possível». Cremos que Juan Luis Panero colocou aqui a máscara de Max Ophuls. 
Poeta de uma obra escassa (sete recolhas de poesia em 35 anos), quando se lê de um fôlego Juan Luis Panero a primeira impressão é de alguma monotonia, pois não são visíveis bruscos saltos processuais ou alterações temáticas – passa-se tudo em surdina. Parece pelo contrário um poeta já formado ao primeiro livro e que com leves flutuações prossegue a sua  (citando a fórmula feliz de Maria Pepa Palomar) «poesia-racconto, ao modo de Pavese». De livro para livro,  Panero condensa, recapitula, como se quisesse fundamentar uma disciplina da reserva, uma pedagogia da contenção, uma sageza para a reticência.
A Través del Tiempo, Los Trucos de La Muerte, Desapariciones y Fracasos, Antes que Llegue la Noche, Galería de Fantasmas, Los Viajes sin Fin, ou o mais recente, de 99, Enigmas y Despedidas: eis os elucidativos títulos dos livros de Juan Luis Panero. Nesta poesia de tónica existencialista, a realidade manifesta uma propensão para a «débacle», para a dissipação. A consciência do tempo devém um baile de fantasmas, a quem «a deriva dos incidentes» (Wallace Stevens) empresta às vezes uma inesperada harmonia, desde que se esteja desembaraçado de toda a concepção prévia, de toda a vontade de ordem, mesmo antropocêntrica: «Imagino-vos mais poderosos que o tempo tão temido, porque espíritos, plantas, hoje/ me dais testemunho do seu inútil domínio».  (Fosséis e Minerais).
Cabe ao poeta o ofício da memória, erguer recifes onde como náufragos os seus desencantos resistam ainda à diluição e ao desaparecimento, na medida em que o próprio tempo, ainda que seja o operador, se vê sujeito às  mesmas armadilhas que tornam sinistra a irmandade entre a terra e os mortos. E cabe-lhe também, com uma  sabedoria embebida em estoicismo, proceder ao massacre das ilusões – das quais a primeira é precisamente pensar-se que o leito onde se inscreve a nossa durée corre para a fonte.
Panero reflecte continuamente sobre o que a insolvência do tempo desprende da existência - separando-a, tornando-a exterior. Exterioridade que tenta e corrompe  inclusive o que julgáramos mais interior a nós: o corpo e os seus lugares de afecto/desejo. Tal como o tempo, também o corpo e as suas insufladas emoções se esvaziam, paradoxalmente, à medida que se expandem, dissipando-se no interior de si mesmos. E a tragédia estriba-se aqui: só é recuperável, pela reflexão, o que já não nos pertence e nos exterioriza. Esta contradição, entre a linearidade apocalíptica do tempo físico e a sua ambulatória, reversível, realidade psicológica, gera o pathos desta poesia aberta aos diques da experiência e à sua condição dissociativa.
Não obstante, nestes versos a natureza não é malévola, o mal não se erige como uma fatalidade: há uma dignidade no afrontamento da adversidade que a restitui como destino e que converte a inexorável espessura da morte (e da sua sombra: o esquecimento) numa espécie de brando consentimento da neve. Eis a sua grandeza. Se recensearmos os avatares culturais que Juan Luis Panero convoca – Scott Fitzgerald, Hemingway, Malcolm Lowry, Drieu de la Rochelle, Mauraux, entre outros – constata-se serem todas criaturas de antes do «pensamento débil», criaturas que toda a vida lutaram, ainda que derrotadas à partida, pela legitimação e responsabilidade de um destino. Seres do Limbo, em perpétua vigília, que cabem na definição insuspeita de Sartre: «le póete moderne est celui qui s’engaje à perdre». 
Releia-se Cioran a dissertar sobre as suas insónias e sabe-se: a vida é suportável por causa da descontinuidade que lhe dá o sonho. Ora, Panero, na escrita, antepõe sempre o filtro da consciência - um fluxo contínuo - desautorizando o duende com as armas da precisão: inteligência, e paixão (- evidentemente, a que sob o efeito da sua intensidade se desdobra em narrativa). Juan Luis Panero é um lírico que nunca se entrega à efusão da metáfora – suspeita dela - e cuja matéria verbal não perde o talhe de uma dilaceradora acareação com o real. Mesmo quando é contemplativo, o seu estado não é passivo, entregando-se Juan Luis Panero muitas vezes a jogos cénicos: «os seus poemas são antes de mais um pôr em cena teatral e às vezes cinematográficos» (César Antonio Molina). Um dos exemplos mais fascinantes deste procedimento é o poema Um Estrangeiro, que corresponde a um travelling cinematográfico impulsionado por um narrador em off que, no fim, por um assomar de espelhos, se descobre ser a personagem.
Juan Luis Panero move-se com a arguta lucidez da insónia, como um felino por entre escombros, estragos materiais, sopesando nos breves fulgores da memória a sua irradiação perpétua: essa réstia de valor que permita «entrar na morte de olhos abertos», como exorta num dizer o imperador Adriano (da Yourcenar) - personagem caro ao poeta. Será então função do vate – a sua ética por supuesto - desenvolver os atributos que Juan Luis Panero detectou em Carson Mc Cullers e Isak Dinesen: uma «assombrosa capacidade para fazer do Inferno um lugar habitável».
Outra coisa que me foi atraindo neste poeta é a triangulação entre poesia, álcool e tempo. O álcool calcina o instante, entroniza interior e exterior numa síncrona batida cardíaca, e tem por isso propriedades anestésicas, contra o tempo ou o dor que o assiste (, não me move qualquer intuito psicanalítico mas não posso deixar de assinalar que na crónica sobre o filme El Desencanto - que abordava o dia da morte do seu pai, o poeta Leopoldo Panero - Juan Luis, numa breve e mordaz sinopse sobre a sua vida, tenha mencionado por duas vezes o «irreprimível desejo» do pai em tê-lo sempre «o mais longe possível»). O álcool funciona neste poeta como o sonho noutros: é o instrumento que distorce as perspectivas, ou que abole, suspende, as suas coordenadas. Mesmo as expressivas e gramaticais: as brancas suprimem a loquacidade do tempo e marcam-lhe outro ritmo, novos intervalos, “humilham-no”, colocando o tempo à mercê da repetição. O tempo é para o alcoólico esse lagarto que os mexicanos cozem no bojo da garrafa onde fermenta uma água refractada.
Esta poesia convoca, o mais das vezes, poucos elementos, um vocabulário pobre (repare-se no  repertório estreito da adjectivação: cálido, terco, tíbio, tenaz …quase perfazem o elenco). E não são incomuns as repetições ou os “engasgues” de expressão, as que o álcool tece na sua chave de braços à desabalada velocidade do tempo. Coisa que o Lowry, um dos avatares continuamente convocados à boca de cena desta poesia, sabia como ninguém.
Não acredito num estado neutro da língua que permita uma tradução que não seja interpretativa. Provavelmente, a cada estação da vida do tradutor corresponderá uma sintonia diferente com o texto de que se parte. Na generalidade segui o conselho de Borges, contido numa resposta a Roger Caillois: «...não creio que seja possível atingir a exactidão verbal numa tradução. É mais importante encontrar a cadência que convenha ao tema. Penso isso, não somente sobre a tradução, mas também sobre a composição. Uma vez que se tenha encontrado o acento justo, nem muito alto nem muito baixo, nem muito enfático, já se tem o poema.»
Ia escrever: “há algo de blues nesta poesia”. Mas uma  rajada mais forte, que lança as ramagens contra a montra do bar e varre de uma vez a melancolia, deteve-me. Em homenagem ao poeta, peço um vodka. Ao lado um caixeiro viajante conta o drama que foi quando os seus mapas e atlas não encontravam comprador porque a pulverização da União Soviética lhe desactualizou o material. Distraio-me.


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