ainda por cima o sacana é bonito |
Um amigo emprestou-me um livro de entrevistas com Medhi Belhaj Kacem, um jovem romancista e filósofo (ou anti-, como se auto-classifica) e actor de filmes franco-tunisino, discípulo de Badiou.
O livro, que se chama Pop Philosophie, é notável, mas o que espanta sobremaneira em Kacem é a sua assustadora capacidade de produção, tendo em conta os seus 40 anos. Este livro de entrevistas, que já é de 2005, tem 500 páginas e revela um pensamento denso, amadurecido, informado, irónico e acutilante. Leu tudo, pensa como um carro de fórmula 1, enquanto se entretém com jogos vídeo e ouve rock que se farta. E não receia a colisão, ser controverso. Precedem este livro dez outros calhamaços – entre romances, ensaios sobre estética ou de filosofia – e sucederam-lhe mais cinco ou seis. E vê-se pela entrevista que esta urgência da escrita não o impede de viver: não perde um filme popular, pitada de sexo, não extravia um copo, uma oportunidade de estar com amigos.
Fascina-me esta voragem, pobre de mim, mais lento e perfurado de lacunas. E invejo-a. Esta capacidade de trabalho não a encontro a Sul, não só porque há um tanto de lagarto no coração dos sulistas como o calor dá o álibi para o delitro e a mais honrosa irresponsabilidade. Irresponsabilidade a si, como se depois duma coisa bem feita fosse uma tensão excessiva fazer uma segunda. Aqui o fluxo do pensamento é muito mais intermitente.
Depois constata-se nele uma crença da passagem ao acto, que é socialmente desaconselhada a sul. Repare-se, Kacem, que escreveu o primeiro romance aos 17 anos, fez das suas tertúlias juvenílias o plinto para duas revistas de filosofia, Tiqqun e ÉvidenZ. Eu não conheço um intelectual em Portugal e Moçambique que não reivindique o «direito à preguiça». Foi a minha cartilha por décadas. Um artigo ou crónica por semana, um poema em respiração boca-a-boca, doze projectos na gaveta, e, upa, upa, a inscrição adiada no Clube dos Procastinadores. Com decalitros de cachaça a correr entre as desmemoriadas pernas da táctica e da estratégia.
Há por aqui algo dum imenso fedor a Carnaval – perpétuo, mecânico, dispersivo – que combina uma hostilidade profunda ao método com uma entrega à paródia e à líquida vocação para a paráfrase. Se alguém produz, de modo regular e inescapável, como a Agustina Bessa Luís ou o João Paulo Borges Coelho, de imediato há quem reconheça aí um defeito, pois «que benefícios traz publicar livros a uma velocidade que o leitor não acompanha?». O problema é deslocado da preguiça do leitor para a insensatez do escriba.
A ninguém passa pela cabeça que imprimir um ritmo contínuo de trabalho ao trabalho criativo ou intelectual favorece uma permuta entre as sinapses de outra voltagem, e que esse é o segredo duma criatividade caudalosa, consequente, enquanto a atracção pelo devagar abre um poro na direcção da contingência que torna tudo mais aleatório, para além de sujeitar a navegação aos caprichos do clima.
Agora mesmo, no autocarro, vinha ao meu lado um estudante universitário. Um rasta com um gorro de lã. Para além das extensões no cabelo que lhe enrodilham a cabeça num toucado tépido, um gorro de lã. Tudo o que pedem os 32 graus da manhã. Que argúcia pode surdir de tal estufa? Quando um gajo tem a cabeça à temperatura do interior das tripas que pode nascer daí?
Fazer da vida uma aprendizagem para o desfoque, a fissura, o desperdício, nem tem mal, pode ser uma carreira simpática falhar a vida, mal tem, sim, a auto-complacência, as desculpas de mau pagador. O furor de Kacem relembra-mo e faz-me entender o que dizia certo treinador de futebol: «o jogador descansa com a bola nos pés».
a única coisa em que passo a perna ao amadeu é nisto: eu sou muito mais fotogénico |
E serve isto para vos falar de um dos poucos poetas portugueses que conheci que não sofrem dessa suficiência do poucachinho, e como Kacem um outsider que não teme o derrame e o enfrentamento contínuo com a palavra e a sua erosão: Amadeu Baptista.
Um mouro de trabalho, o Amadeu escreve na cadência supersónica com que a funda de David derrubou Golias. E está para a poesia como o canivete-suiço para os seus pares: abre em todas as direcções, profuso e eficaz. Confluem nele o sagrado e o profano, a contenção e o ímpeto, o discursivo e a metáfora, ora cultiva o soneto, ora se desprende em odes de quilómetros; flirta com a contradição, e não teme, depois dum ciclo de poemas religiosos, onde fareja o sublime, entregar-se ao erotismo ou à mais fragosa obscenidade. É absolutamente um criador sem auto-censura, sem outro estilo senão o da sua fúria de viver; um epicurista que ama a colisão.
No último projecto dele que acompanhei de perto, Os Pássaros da Babilónia, projectava escrever 500 poemas sobre obras de arte do século XX – despachou a coisa em seis meses. É doido, e lê-se sem um grama de cansaço.
Acabou de abrir as contendas, com um blogue: aqui.
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