ROBERTO JUARROZ
(1925-1955)
Poeta e ensaísta argentino, um dos mais importantes e secretos poetas argentinos do século vinte. A parte mais importante da sua obra está reunida num volume intitulado Poesía Vertical.
As traduções são minhas.
Uma grande tentação se oferece ao homem, a de exercer a sua capacidade mais superlativa e radical: criar. Eis porque não se trata de ver o poema. Paul Éluad dizia justamente que o poema consiste em dar a ver, em mostrar o mundo, em mostrar o que a quotidianidade nos dissimula e nos esconde a inanidade da vida. Dar a ver a realidade substancial do homem, o que a nossa precariedade, a nossa incapacidade, os constrangimentos da existência, nos furtam e o que nos escapa por sermos inaptos para responder directamente à exigência absoluta. Direi mais: não basta dar a ver. Trata-se de dar a criar, de um incitamento a se re-criar.
Não cesso de me emocionar quando me lembro de que Paul Klee disse «o visível não é senão um aspecto do real». A poesia seria desde logo a tentativa de revelar os aspectos da realidade que são invisíveis.
Creio que toda a arte é uma ruptura, uma fractura do real habitual para ter acesso a outra coisa, a uma forma inaparente do real, talvez o fundamento mesmo do real.
A poesia não visa o confortável recurso duma resposta, mas alguma coisa de mais grave, de mais importante, que consiste em procurar no homem as presenças que o acompanham. A poesia não oferece nem solução nem fórmulas, nem receitas fáceis, mas uma companhia para a vida.
Num místico, no meu entender, o verbo não é essencialmente senão um pretexto, e a sua autêntica vocação é o silêncio. Em poesia, pelo contrário, o verbo é parte integrante da experiência fundamental. A poesia não desagua jamais no silêncio, ainda que tal seja por vezes dito. Agora, o silêncio não desempenha na poesia um papel menor que o verbo.
(…) duas atitudes devem ser bem distinguidas. A primeira, que definiriam substancialmente a ciência e a filosofia, tenta elucidar o sentido das coisas. A segunda, que compreenderia a mística, a poesia e a arte, persegue não apenas o sentido, mas além disso uma transformação da realidade que é o homem. É por isso que um dos meus primeiros poemas termina assim: SER NÃO É COMPREENDER. A poesia deve ser uma transubstanciação de todo o fazer e de toda a coisa, através da linguagem e da vida do homem levados a seu máximo de poder expressivo, associativo, revelador.
Lembro-me que Menéndez Pidal dizia que falta aos dicionários assinalar, para além da definição ou a função de um nome, a sua carga emotiva. Se cada palavra comporta uma, o facto de pensar e de nos exprimirmos é eminentemente emotivo: não há pensamento sem emoção. É bem neste sentido que julgo pensar.
O culto do irracional, como tal, não é unicamente uma reacção excessiva, desmesurada, injusta contra a parte mais humana que implica igualmente a razão. A procura do para além do racional consiste num reconhecimento integral do homem, do seu comportamento racional e irracional, numa ultrapassagem do simples movimento dialéctico da razão e do conhecimento, e visa então a busca dessa terceira dimensão onde se produz a conivência viva e real de elementos aparentemente contraditórios.
Creio que a ética, a estética e a poesia são autónomas e se referem a objectos diferentes. Nós vimos já que a poesia não pode ser reduzida a um simples conhecimento. O carácter excepcional da experiência poética não pode ser assimilado a nenhum sistema ético, estético ou gnoseológico determinado. A questão consistiria então em saber se a poesia é ela mesmo susceptível de dar acesso à virtude, à beleza, à verdade. Se nós consideramos a ética, por exemplo, nós vemos que ela se refere à conduta do homem relativamente a certos valores, o bem, o mal, ao que conforma, ou não, o erro, a falta, a coragem. Mas estas noções são de todo estranhas à poesia que não têm nada a ver com a ética: ela é uma ética profunda. Ela é, no fim de contas, uma maneira de ser, de se conduzir em profundidade, uma atitude de inteireza face ao real. A poesia é uma tentativa de purificar a visão, de abrir o olhar sobre as coisas na sua plenitude. Creio que a poesia sustida por uma conduta integral é uma das formas maiores duma ética perfeita.
Quanto à estética serei tentado a repetir que a poesia desdenha do sentido tradicional da beleza enquanto harmonia ou equilíbrio e intenta, ao contrário, uma plenitude expressiva que não se conforma necessariamente com certos cânones, normas, medidas ou parâmetros exteriores.
In Poésie et Création/ Dialogues avec Guillermo Boido
Uma rede de olhares
mantém unido o mundo,
não o deixa cair.
E ainda que não saiba o que se passa com os cegos
hão-de os meus olhos apoiar-se numas costas
que podem ser as de deus.
No entanto
o que eles buscam é outra rede, outro fio,
que agora encobre os olhos com um fato emprestado
e precipita uma chuva já sem solo nem céu.
É isso que buscam os meus olhos,
o que nos descalça
para ver se algo mais nos sustenta por baixo,
ou inventar um pássaro
para averiguar
se existe o ar,
ou criar o mundo
para saber se há deus,
ou aceitar meter um chapéu
para comprovar que existimos.
talvez ninguém no universo pense em mim
só eu me penso
e se morresse neste instante
ninguém, nem eu, me pensaria.
E aqui começa o abismo
como quando durmo.
Sou o meu próprio sustento e eis que me retiro.
Contribuo para atapetar de ausência tudo.
Será por isso que pensar
num homem
se parece a salvá-lo.
Entre pedaços de palavras
e carícias em ruínas,
encontrei algumas formas que voltavam da morte.
Vinham de desmorrer.
Mas isso não lhes bastava.
Tinham de continuar a retroceder,
tinham que desviver tudo
e depois desnacer.
Não podes fazer-lhes pergunta alguma,
nem olhá-los duas vezes.
Mas elas apontaram-me o único caminho
que talvez tenha saída,
o que regressa desde toda a morte
até lá atrás ao acto de nascer,
e se encontra com o nada do começo
para retroceder e desnadar-se.
Encontrei o lugar justo para pôr as mãos,
à vez maior e menor que elas mesmas.
Encontrei o lugar
onde as mãos são tudo o que são
e também algo mais.
Mas ali não encontrei
algo que estava seguro de encontrar:
outras mãos esperando as minhas.
Estão as costas do homem mais nuas que a sua frente,
e seguramente pesam menos.
Não partem o vento nem as palavras
tão só as sustêm.
Mas nas costas do homem não está o homem.
Estão os outros homens e a morte,
os risos e os deuses,
a angústia dos mortos.
E estão, também, o fumo de uma antiga fuga,
o molde de um leito demasiado tempo só,
a palavra que ninguém irá dizer,
a ausência disto que ainda não se foi
e sobretudo a soma de toda a ausência,
como uma rede perdida,
como um mar inútil,
como o fracasso de todos os abrigos.
Sim, as costas do homem estão sempre mais nuas
muito mais nuas que a sua frente.
Há um ponto em que a visão do olho deixa de crescer
e começa a decrescer.
É o sítio onde se tece a teia mais gratuita da aranha,
a que não visa caçar mas sim caçar-se.
Ali está o fruto que se exprime para dentro.
O universo se investiga a si mesmo.
E a vida é a forma
que emprega o universo
para sua investigação.
A flecha vira-se
e crava-se em si mesma.
E o homem é a ponta da flecha.
O homem crava-se no homem,
mas o branco da flecha não é o homem.
Um labirinto
só se encontra
noutro labirinto.
Muitas coisas me atam.
Por exemplo,
as múltiplas partidas.
e também as suas múltiplas chegadas.
e talvez, sobretudo,
os inúmeros sucedâneos
de partir e chegar.
Atam-me as rotinas do corpo enamorado
e as incorruptíveis decadências,
as zonas pisoteadas do tempo,
a visão deste mundo e de qualquer.
E pensando bem
talvez tudo me ate.
Mas o último nó desata-me.
Cada coisa tem peso num só lugar.
Nos outros, unicamente cai.
Como o traço que só se cumpre numa praia,
a nuvem no céu
ou a carícia num corpo.
Cada gume corta em nada mais que um ponto.
Nos demais só interrompe.
Cada passo tem também o seu sítio justo.
Salvo o passo que o homem guarda
para entrar no abismo.
Assim como não conseguimos
aguentar muito tempo o olhar fixo sobre nós,
tão pouco aguentamos muito tempo a alegria,
a espiral do amor,
a gratuidade do pensamento,
a terra na suspensão do cântico.
Não conseguimos sequer aguentar muito tempo
as proporções do silêncio
quando algo o visita.
E menos ainda
quando nada o visita.
O homem não consegue suportar muito tempo o homem,
nem tão pouco o que não é o homem.
E no entanto consegue
suportar o peso inexorável
do que não existe.
Apoiar a cabeça sobre uma palavra,
ou sobre uma cor recém-descoberta,
para descansar a outro nível
ou talvez para despertar noutra transparência.
Porque chega o momento
em que até o sonho é uma ironia
e o despertar um simulacro.
Compreendemos então
que não importam os limites,
mas sim a persuasiva permeabilidade dos limites.
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