sexta-feira, 1 de abril de 2011

FIM-DE-SEMANA NO LAGO

magritte, a condiçao humana
O adiantado da noite desemaranha as estrelas
das fogueiras que marginavam o lago    
          e desemaranha remos, juncos e patos  
e desemaranha o sangue da língua do lobo    
          e desemaranha as vagens do manto escuro
do tamarindeiro e desemaranha
         da luz da vela
a alba.
         Chega a manhã e desemaranha
               das sombras o ganido dos cães
e a movente caruma no chão
               e desembainha a tentação do isco
         e desemaranha das pontes
uma rede de corações suspensos.

Como sobem os trinados, do mar
                   de cana-de-açúcar!
Vêm imprimir
         um brilho novo aos velhos ferrolhos,
desprender do caixilho das janelas
           um halo
           banhado pela luz de três dias
inteiros - dois camuflados
           de vida sedentária,
                   e um transparente,
duma ventilação danada. A claridade

da manhã separa as partes da carne,
as partes da rosa,
                         a pressa da velocidade,
as lâminas do estore,
          os desertos da alma,
separa os atributos do olhar apreciador,
debanda a unha do vinco que humedece
os grandes lábios –
                             uma maravilha
como a luz modela os vasos
e num instante os embriaga:
                   ocos.

Calva é a noite mas a ressurrecta luz
da alba despenteia mundos
                             até aí invisíveis,
translúcidos como as medusas no mar,
e desemaranha das rugas
                       dos velhos pescadores
            os arcos de violino,
e há-de desemaranhar
bocejos e sorrisos ao café da manhã,
na esplanada sobre o lago,
                            e os jingles
dos rádios, e novos tremores de terra

a oriente. Pões os óculos, recostas-te na cama,
         ao teu lado, adormecida na mecha
     que te chama, a mulher que amas:
cada coisa retomou o seu lugar,
       depois de ter ardido no escuro.
       E retomas
o que incrédulo leras antes de te emaranhar
       o sono: Inana,
                           deusa da Mesopotâmia,
quis disputar no baixo-mundo
         o palácio de lápis-lazuli
de Ereshkigal; houve pois um momento
em que o Inferno
          era um lugar apetecível.
Sorris, também no século XVII se pensava
que as pessoas felizes não apanhavam a peste.

O gato enfia-se, sinuoso como uma borracha,
entre os teus pés,
                          apaga-te os passos,
faz-te tropeçar na tua insubstantiva realidade.
Sentas-te na secretária de bambu
e abres o laptop,
                        as crianças dormem
no igloo de lona que montámos no quarto,
a ‘Tresa volta-se na cama, tacteia
o teu lugar vago.
                        Lá fora, as palmeiras
admoestam timidamente o vento,
dois flamingos cruzam o lago
                         e acima
um jacto desenha um fio de algodão.

Mais logo, o corpo mutante da alegria
chamará o cansaço, a Luna e a Jade
     hão-de arreliar-se, eu blasfemarei
contra a tarefa de ter de desgravar
uma tão longa entrevista, e as formigas,
revestidas de chumbo      
                     tornarão à terra. E,
           no cerne do que luze,
      recomeçará a noite
a emaranhar todos os fios
                     num mesmo nó, de amianto.

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