Esta mostra antológica não esgota nem de longe nem de perto quer os temas quer o estro do Kok Nam.
O Kok que é um homem de rotinas que não gosta de contrariar, é também um homem que abusou da sua modéstia e que agora tem por arrumar milhares de negativos e um acervo fotográfico que daria em número e qualidade várias outras exposições antológicas. Quando andávamos a preparar o livro que foi editado pela Escola Portuguesa, eu, a Teresa Noronha que o produziu e o gráfico Luís Cardoso, ficámos desorientados pela fartura que se nos apresentava e que excedia em larga escala o que esperávamos. Esperemos que o Kok melhore e que possa ser ainda ele a organizar o seu espólio, que se Moçambique não se põe a pau vai ser comprado por um museu americano. Mas cada país saberá dos cordéis com que deprecia os seus.
Entretanto, a obra do Kok não precisa de nenhuma tutela teórica que a legitime formalmente, já está há muito acima disso, e por isso apetece-me falar de outra coisa.
Se eu tivesse que definir a sua obra diria: é a obra de um homem que não quis ser póstumo ao seu tempo. Isto pode à primeira parecer uma contradição mas não falo da vida do Kok, que, espero, que se aguente às provações por que passa. Falo sim da sua atitude perante a fotografia, que é a de um homem moral, um homem de fidelidade. Explico-me.
Terei de me socorrer de uma entrevista de Maria Cásares grande actriz dos anos 50 e 60, que foi a musa de Albert Camus e grande amiga dos existencialistas da época, o Sartre, a Simone de Beauvoir, a Sigmone Soiret, o Yves Montand, todos os intelectuais da sua época. E nos anos 80 perguntaram-lhe na televisão se aceitaria tomar a poção da juventude, caso a descobrissem. E respondeu a senhora, olhos nos olhos com o Pivot: «sabe, vi demasiada gente extraordinária desaparecer à minha volta para agora não cumprir o compromisso com os meus mortos…». Esta grandeza, que é a de poucos, é a que encontro na fotografia do Kok Nam e nos motivos porque a partir dum determinado período ele pôs a fotografia em pousio.
O melhor da sua obra, o que a estimulava, tem o lastro épico com que a sua geração ergueu em imagens uma memória da construção do país.
No filme brasileiro «25», que retrata o imediatamente antes e o imediatamente após a independência do país, no 1º dia de Moçambique como país independente, há um jovem negro de 20 anos que chega ao pé de um estrangeiro cheio de máquinas fotográficas a tiracolo e pede: «tire-me uma fotografia, que eu nunca me vi». Esta espantosa cena era também a metáfora ideal para um país nascente, e o Kok e a sua geração dedicaram os melhores 15 anos da sua vida a garantir que mais nenhum moçambicano precisasse de fazer tão estranho pedido a alguém de fora.
E o Kok foi um dos mais esforçados, tendo o seu acervo uma consequência, uma qualidade, uma continuidade até uma intensidade como vejo em poucos, e que ultrapassa em muito as circunstâncias do foto-jornalismo.
Não uso aqui o termo intensidade em vão. Porque foi com uma espantosa intensidade que o Kok calcorreou o país anos a fio para devolver uma imagem aos humildes, aos soldados, aos camponeses, aos trânsfugas, aos construtores de um projecto de nação.
Para quem como ele viveu tão de perto um processo onde se apostavam credulidade e utopia, sacrifício e sentido de justiça, os anos seguintes foram os do degelo, os de uma quotidianidade onde os homens se entregam mais ao pragmatismo político do que ao vindimar dos sonhos e o Kok Nom fotógrafo preferiu transformar-se num exemplo cívico e dirigir um jornal independente a voltar á vida de andarilho com uma máquina à ilharga. Creio que ele não queria ser o fotógrafo da disforia.
Em meu ver porque não quis trair a intensidade do que tinha vivido, e não quis fazer uma obra póstuma ao testemunho do que nele fora a mais honesta das entregas, e que tem, como disse atrás, um cunho épico. Era como se ele se sentisse inseparável de algo que fora suspendido e agora, por fidelidade, não tolerasse como fotógrafo o chão quotidiano e os seus temas mais corriqueiros, depois de ter sido um dos maiores documentalistas dos sonhos de um país.
Porque nunca se tratou de “saber fotografar”, da habilidade técnica, de fazer uns enquadramentos bonitos, mas do entusiasmo em fazer o mais correcto para melhorar o mundo e a lógica de tão cínicos tempos como os que atravessamos não o motivava. É neste sentido que falo do seu estofo moral, o Kok nunca quis tirar partido dos seus créditos – a dado momento não teria sido complicado ter-se tornado um grande fotógrafo internacional e viver à conta do nome feito. Escolheu sempre a opção mais difícil para si e vejo aqui muito da sua grandeza como homem.
Um homem simples, a meio caminho entre um intelectual e um prático, e que nunca deixou de ser inteiro.
Surpreendeu-me sempre que houvesse gente que quando eu manifestei o desejo de lhe fazer uma entrevista grande, para livro, me procurasse demover porque diziam que o português do kok punha os cangurus no tecto. Como se a sensibilidade e a memória de um homem não fossem os seus melhores cartões de visita.
Lembro-me da graça com que ele num almoço em minha casa replicou à minha filha Jade, de quatro anos, que olhava para ele muito atraída, para lhe sair numa súbita evidência, enquanto lhe apontava o dedo:
- É o senhor chinês!
E responde o Kok, confundindo-a ainda mais:
- Chineses são os canários, eu sou moçambicano! Mas a Jade é sueca, não é?
Eu passei a admirá-lo mais desde a nossa entrevista e estou-lhe grato por termos feito um livro tão humano. Humano a um ponto que me lembra um verso de Sá de Miranda onde o poeta quinhentista diz: «poeta até ao umbigo, os baixos prosa».
Por isso, a mim que sou o seu amigo mais imperfeito, no fecho desta exposição que reúne as fotografias do livro - e que me perdoe a anfitrião, a senhora cônsul - mas só me ocorre dizer: tenho saudades do Kok, porra!
Eu, que sou, igualmente um amigo “imperfeito” do sábio Mandarim moçambicano Kok Nam, fico-lhe grato por ler esta escrita namorada e escorreita. O HOMEM está aqui de fio a pavio. Também tenho saudades do Kok Nam, porra!
ResponderEliminar(vou publicar o texto no blog no qual sou confrade)
gostei muito das fotografias. Especialmente da 1ª.
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