quinta-feira, 7 de abril de 2011

A ESPINGARDA NA LAREIRA E O CUBO DE GELO

1)    Se experimentássemos na vida real o mesmo tipo de intencionalidade sígnica que se investe na construção de uma narrativa cinematográfica viveríamos num estado de completa paranóia.
Resolvido o problema, os protagonistas, depois do longo itinerário da crise, pacificados, acolhem novamente um olhar inocente, que aceita o acidental e o aleatório à sua volta, mas durante, não só o mais pequeno sinal tem significado como pode adquirir um segundo e terceiro nível de leitura. Como quem não quer a coisa.
Um bom exercício é ver um filme do fim para o princípio, depois de sabermos a que finalidade o enredo conduziu a história e as personagens.
O encontro acidental, no princípio do filme, do detective com um atleta embuçado no mictório público do parque, e o diálogo trivial que travam sobre a segurança e a higiene das instalações, uma hora depois, sabido que o atleta é afinal o serial killer que a polícia procura, toma o aspecto duma conversa cifrada, e todas as sílabas pronunciadas nesse encontro “ocasional” mostram-se afinal revestidas de significado e anunciação. O espectador virgem é que ainda não estava avisado.
O pacato universitário que participa num seminário, numa cidade a 10 000 milhas da sua casa, e que verifica ao desmanchar a mala no hotel que se esqueceu da sua escova de dentes, irá conhecer uma mulher fatal, na fila do supermercado onde se desloca para comprar uma escova, que o arrastará para uma aventura sexual, que afinal se desdobrará numa vertiginosa história de burla onde, até quase ao fim, ele será a única personagem que não sabe o seu papel.
Não há absolutamente ponto sem nó, numa fita – como quem não quer a coisa, no fluxo do inaparente cresce a sombra. E o que era inconsciente toma a dianteira, saturados os indícios.
Uma regra de ouro nas artes da representação, e que já o Tchecokv preconizava há mais de um século, quando explicou que a espingarda que aparece no cenário, por cima da lareira, no primeiro acto, tem de ser usada no terceiro acto. 

2)    Transformar um índice aleatório numa necessidade é o dispositivo da criação e quando se consegue harmonizar o acidental e o necessário dá-se a arte.
Tomemos uma cena de intimidade, na última estória de 5 x Favela - "Acende a Luz", dirigido por Luciana Bezerra -, que me parece a mais estimulante deste filme em sketches realmente simpático mas ainda um pouco imaturo.
O marido, entesado, tenta convencer a mulher a ir para a cama e faz-lhe o cerco. E ela dissuade-o invocando que é Natal, que eles estão sem energia em casa… e sem gelo para servir aos convidados que daí a umas horas irão lá a casa. Ele acaba por aceitar adiar o coito e sair em busca do que há carência.
Em situação, como quem não quer a coisa, a cena contrapõe à tusa dele, hot, o degelo dela - em nome do que falta em casa: algo que será partilhado com todos. E engatilhado pela promessa implícita ao jogo dela (‘faz-me agora a vontade e logo terás a recompensa que esperas’), o marido parte em busca do que lhe pode resfriar os ímpetos: o gelo.
Este jogo do inverso é um momento excelente, pois no breve relance duma cena de intimidade (uma nega) a realizadora não só nos dá o mecanismo relacional - naquela casa é ela quem estabelece as regras da relação - como ilumina uma dimensão inconsciente: estará já aquele marido no ponto de cegueira que deixa a mulher solta?  
Mas tudo isto entrosando-se com o spot principal: há falta de luz na favela.

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