sábado, 23 de abril de 2011

LOTE DE SALVADOS: CADERNOS DE MARÇO


“Quanto à ponte que se afundou ontem, tem algo a dizer? Está em directo na 99 FM”


O rio distraído
No reflexo da cotovia
Não cala a torrente.


Escreve Gil de Biedma:
   “De mi piqueño reino afortunado
    Me quedo esta costumbre de calor
     Y una imposible propensión al mito.”
E fico absolutamente dividido sobre se traduziria o verso final à letra ou se substituiria impossível por insustentável, pois vacilarei sempre até ao fim sobre o poeta se acha imune ao mito ou se se lastima porque o alimenta - apesar do seu tempo o desaconselhar.


Já não tenho idade para escolher entre “linguagem” ou “sujeito”. Indiscerníveis: a casca de amendoim não despega do dente dela. 


O mistério do olho é que cliva.


A «Tábua da Esmeralda» abole a ideia de ascese, pois se o que está em baixo é igual ao que está em cima e vice-versa tudo foi Um (ou Uno) desde sempre.


Farto de amuar sozinho agarro o favo de vespas.


“Embora morto duas vezes, viver me é dado” – escreveu Mandelstam, que nunca perjurou.


Quis penhorar o morto.


Quem não tem senso de humor nunca vai entender a dialéctica, assegurava Brecht.


Em matéria de malandragem, era muito mais que um zingarelho.


Na Idade Média, os monges compuseram os Cantos Gregorianos acreditando ser a música cantada por anjos e santos, no Céu. Algo se perdeu no caminho.


Descobriu que não tinha um leitor que não fosse daltónico.


- Tem lápis de 2, 5, 6 e 7 contos…
- Dê-me o mais barato. Pode afiar-mo?
- Não tenho afia usado. Mas tem lápis afiado, custa 5.
Eis a informal democracia africana


Uma onda atirou à praia um seixo branco. Como parecia um ovo, as gaivotas pousavam para ver. Bicavam, empurravam, intrigadas: era duro e infértil como uma página em branco.


Mordendo o freio, como um potro
há pouco atrelado, a palavra anuncia
a tua iminente perda de domínio.
E não te iludas, o medo de longa cabeleira
enforca nela os prudentes.


E vamos ao caso da moeda inocente, que dá sempre caras.


Cada grão retirado pelas formigas à terra é mundo ou rasura?


A um rato de biblioteca tudo se perdoa menos a consternação do amor. A uma rata de biblioteca tudo se perdoa menos a abstenção da leitura.


Em África, que regride, o Outro é encarado como sombra e não como rosto, e negro será o negativo do branco e vice-versa. Como romper este círculo?


“O simples é sempre alguma coisa que difere por natureza”.


O mundo é um incorporal que subsiste apesar das nossas projecções sensíveis sobre uma carta transparente como areia movediça.


A MULTA, EM LUSOFONÊS:

Sacar é entender, saca?
Explicou-me o tira
que me casseteteou a cachola
antes de me sacar a mola.

Ele disse: “ Vamos tentar pagar!”
E eu retorqui: “Se é para tentar, não pago!”
Aí ele deu uma baita gargalhada, xxiii,
antes de entrar grilo no silo.

Tudo protocolarmente proteico.
E assim prometaicamente irado me fodi.


Acho um trevo de quatro folhas, seco, no meio duma agenda que alguém esqueceu na sala de espera de Oncologia. Cai um soluço em saco roto?


O QUE NOS DISTINGUE DOS ANIMAIS; MEU CARO?

Antes da invenção dos nomes, se Adão quisesse dizer a Eva que a achava tola como um jumento ele teria de agarrar na sua cara-metade e de perambular pelo Éden à cata de jumento e então teria de apontar para a criatura e de pôr-se a grunhir, aos pulos, enquanto mimava caretas idiotas para que ela entendesse e então decidisse se o escoiceava nas partes ou não. Agora é mais simples, ele regozija-se, “sou um homem se sorte, em relação ao jumento és muito mais bonita”, e ela replica, “e se fosses levar nos entrefolhos!”, e em cima passa o urubu soberano.


A DESOVA DE COLOMBO

Pôr um ovo em pé
e domar o medo
quando o vento range
nas enxárcias foi o melhor
do genovês que se cria
nas Índias Florescentes
quando arribou a Cuba.
O pior foi a desova
que se seguiu.


Lia com diferentes graus de atenção,
consoante a luz que estanhava o avesso
das consoantes, consoante sentisse
a sua pele imersa até cima no pólen
ou não, consoante a elipse do mosquito
que lhe desarrolhava os nexos,
conforme o descasque da compreensão
e a sua caneca de barro contivesse vinho
ou chá, lia e porfiava na esperança
de os aluviões de dentro coincidirem
com os leitos e de como um prego
finalmente respirar fundo.


ANTI-PLATONISMO

a)
No elevador do 33 constato que os telemóveis inibiram o enleio entre homens e mulheres: já ninguém se olha, abstraídos no digitar das mensagens. É um horizonte que se fecha, um diferimento a partir do qual tudo se desmorona. E então retine-me nas meninges a danosa lição de Platão: dinheiro de bolso para a alma, a vida.

b)
Moscas de luz enchiam o ecrã duma betuminosa saudade. Mas há muito que havia estropiado os olhos nos mamilos da consorte…


O pássaro soçobra no ar
a térmite soçobra no oco
a montanha soçobra no vale:
eis o castigo de Tântalo.

 
A tartaruga nunca torce o pé. A formigam idem. A girafa tem mais hipóteses. Um cabide só em Lautreamont podia chegar a essa plausibilidade. Já um coração torcer o pé, está na ordem das coisas: reféns das mitologias próprias e alheias, quantas vezes nos vimos nus, meu amor?



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