quarta-feira, 6 de abril de 2011

DA GUERRA COLONIAL: CINZAS & BRASAS/ K3 de Nuno Dempster

Nunca frequentei muito os blogues. Era um universo que menorizava. Julgo que pelas mesmíssimas razões por que nutro reticências a escrever para crianças, embora já tenha dois livros no género publicados e outra história a meio: por falta de atenção e de humildade. Um orgulho de prematura velhice lazarenta, de cigarrilha ao canto da boca e uma citação de Malcolm Lowry ou de Philippe Sollers sempre no colt. Cabotinices de geração.
Mas, concluindo, fui sempre desconfiado. Bom, há boas razões para continuar desconfiado, mas igualmente as há para constatar que surgiram coisas realmente notáveis e que um vulcão subterrâneo se move e mudará, como efeito da blogosfera, uma futura história da recepção literária.
Por isso, eu que durante uma década andei distraído, agora tento recuperar com a pressa dos que pedalam na arte do devagar.
E de outros nomes virei a falar, em Portugal, que da blogosfera assaltaram a literatura com engenho, “ferocidade” e muita eficácia nas manobras, mas para já quero adiantar dois nomes seguríssimos: Henrique Fialho e Nuno Dempster.
Doravante, se quisermos ser sérios, quanto a nomes em foco na poesia portuguesa dos últimos cinco anos terá de se mencionar o Fialho e o Dempster, ainda que os seus livros não circulem com grande visibilidade no circuito comercial. 
K3, de Nuno Dempster (&Etc., 2010) é um livro de versos tracejantes, que com a coragem e o fôlego dum poema de 56 páginas, nos transporta a um cenário de guerra, por “um rio/sem hipótese alguma de lirismo” (pág. 23):

«De bruços no poema,
Avançamos em fila para sul.» (pág. 41)

A “jornada pelas trevas” começa pelo mês das cerejas, quando o narrador-enquanto-jovem-magala embarca com centenas de outros no Cais de Alcântara, a caminho da inapetecida guerra colonial.
Guiné-Bissau era o destino, a chaleira onde, em infusão, homens eram assombrados pelos vapores do seu medo, até ao apuramento do lobo:

«Recordo a juventude,
iríamos perdê-la à vista
do mar barrento,
sem entender que negros eram aqueles,
tão diversos de nós,

que faziam ali,  no espelho pantanoso
do rio Geba, à volta do navio,
além de carregarem as bagagens,

os corpos musculosos de hulha
pronta a incendiar-se.» (pág. 20)

Este «filme», o Apocalipse Now do seu narrador, procura «retomar o passado contra o tempo», numa montagem cénica em que o corroer da inocência dos incautos nautas recorta simetricamente a circunstância histórica que os condicionava.
O livro acusa sem, inteligentemente, cair numa denunciada retórica da incriminação política. O contexto está lá para elevação dramática: nem outro seria o tom certo quarenta anos depois. E antes faz-nos acompanhar a ingenuidade dos seus protagonistas:

«O sol clareia a falta de sentido
do rumo que levamos,
daí que eu não chegasse a ver no mar
sinal de deuses,
dos deuses que se lê terem andado ali,

só peixes-voadores,
alheios ao clamor dos afogados,

os deuses, se estivessem, lembrariam
não haver quem alcance
quantos náufragos jazem sobre as águas,» (pág.12)

Gente simples, duma juventude desprovida de cultura clássica e que por isso não distingue o tridente de Neptuno de entre a espuma das ondas - e a quem ainda não aflorou a consciência política. Muitos só tinham, à flor da pele a sensibilidade da sua época, e heróis menos nacionalistas e míticos, como o narrador: «Já eu então estava destinado/ a não ser Gilmour,», (pág.27). Gilmour, o dos Pink Floyd.
Só a guerra despertará alguns para a dúvida, para a própria elucidação das emoções. Aliás, talvez por isso, o que diferencia K3 de Catalabanza, Quilolo e Volta, de Fernando Assis Pacheco, o outro grande livro referencial que em versos tratou da Guerra, esteja na sua muito maior contenção em relação à presença de «pathos» (- de que o livro de Pacheco está saturado). Onde Catalabanza nos punha em situação, este narra; onde Catalabanza subjectiva, K3 antepõe um maior equilíbrio entre a guerra de um homem e a anti-epopeia colectiva que escamou uma geração; onde Pacheco procura a empatia, Dempster expõe a perplexidade da emoção diferida com que fecha o poema:
«Na despedida, o ataque a Gebo
a que assisti sozinho
no banco de um jardim desmantelado.

Voltar ou não voltar,

Morrer ou não morrer, tanto fazia.»(pág.63)   

Como se vê por este final, Nuno Dempster não produz um relato sereno – que pulsação da guerra o deixaria? – mas consegue matizar uma distância, permeá-la de reflexividade, apesar da iniludível violência da perda, do cheiro a vomitado dos recrutas, da inclemência dos estampidos que não saem da pele, dos traços da morte:

«Sentia o sangue
com que velhos facínoras
conseguem amansar
a força juvenil,
carregá-la de armas
e trazer carpideiras da polícia
para embalar as mães,
já confinadas ao destino,
quando os filhos regressam em caixões secretos,
cujo rosto de pedra-sabão
não lhes consentem ver.

“Os filhos mortos deitam um cheiro insuportável”,
Diziam os paisanos. (pág. 10)»

Por isso este relato de 56 páginas tem a força duma crónica cauterizada,
e apesar de por um lado concordar com Henrique Fialho quando este refere que neste livro «de algum modo a viagem que parte da Estação Marítima de Alcântara, nos questiona sobre a própria natureza da poesia e as suas fragilidades quando confrontada com os relances da vida: “os versos serão sempre/mais do que os mortos/ e têm vida curta”»,
por outro também creio divisar em K3 uma espécie de cântico de superação,
no sentido em que, se o poema fala e mostra como em situações limites os homens rapidamente se tornam predadores, a sua narração rejeita quaisquer laivos de cinismo (que podia despontar com facilidade pelo avesso do exorcismo), e diz que nada pode obrigar a tornarmo-nos cúmplices dos perseguidores.
E para que não haja dúvidas, Nuno Dempster, inclusive, abandona neste poema a ironia que lhe é tão peculiar em tantos outros poemas.  
K3 é, neste intento, um poema de claro vinco ético, que à imediata leitura política sobrepõe um duro itinerário de iniciação:
a de que só a vida sucede à vida, mesmo que não pareça.

«um tiro na cabeça do africano,
as orelhas cortadas,
um escarro nos olhos revirados,

desiquilíbrio mórbido,
pavor nocturno

a pele mais rascante que
gravilha das pedreiras.

O instinto de matar é não morrer?

Não é.
É não matar.

A vida só confina com a vida:
mesmo que seja escassa:»(págs. 33/34)

K3 devia ser lido como uma oratória, e tinha vantagem em ser dramatizado para várias vozes e banda sonora. Infelizmente, o estado de apatia a que chegou a poesia e o seu papel em Portugal, e por outro a incapacidade da lusa gente para lidar com os seus fantasmas, tornam este projecto improvável – embora me seja claro que K3 peça uma locução em voz alta e no silêncio que antecede a emboscada.
Porque, afinal, somos todos «áugures no fim da validade».
O melhor é adquirir já este excelente livro antes que esgote, pois com o Vitor Silva Tavares (o editor da &Etc.) não há reedições.

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