sexta-feira, 8 de abril de 2011

BORGES E HITCHOCK: ENCONTRO NO BRITISH BAR

Dentre as milhares de crónicas/críticas que escrevi em torno do cinema, algumas ficaram-me no goto, como esta, que encena um encontro entre Borges e Hitchcock no British Bar, em Lisboa, um bar afamado entre os marinheiros de todo o mundo por causa do seu relógio cujos ponteiros andam ao contrário, motivo que teve direito a uma cena em A Cidade Branca, de Alain Tanner. A crónica, se não me engano, saiu no Expresso em 2001.


Empreendia nas decepções humanas que podem ter levado, no fim da vida, Eduardo de Filippo, um dramaturgo cumulado de sucessos, a preferir encenar A Tempestade com marionetas, emprestando a sua voz a todas as personagens; ou antes, empreendia na cena desvairada em que estava a minha vida, com personagens (de esplêndida vocação animal) a entrar e a sair de palco, num fluxo ininterrupto de tempestades, quando dei conta de que, à medida que a ia bebendo, a caneca ficava cada vez mais cheia.
Foi o sinal de que me encontrava no British Bar e, irreparavelmente, a meio de um sonho. Olhei em volta. Estava rodeado de sombras, todas elas tão indiferentes como a da ventoinha no tecto. Até que ouvi aquela voz, de costas para mim. Olhei para o chão e titilaram-me as meninges: lá estavam as duas, levemente alongadas mas atadas pelos pés, como se a mesa da frente fosse um canteiro, de onde brotavam.
Eram as sombras de Borges e de Hitchcock. Celebravam os respectivos centenários. Como reconheci eu a sombra de Borges? Pelo sépia. São sépia as sombras dos cegos. E pelo modo de sublinhar o que dizia abrindo e levantando levemente a mão da bengala, equilibrada como um prumo, antes de a voltar a fechar no momento exacto em que o castão oscilava. Como se risse com os dedos.
Hitch? Um ovo com duplo queixo? É de olhos fechados. O realizador lamentava-se:

- Eles não compreendem as profundas afinidades que têm as nossas obras?
- Profundas? - hesitava Borges.
- As suficientes. O «tema do homem que é ninguém e que é todos», que o Borges explora em tantos contos, por exemplo, eu ensaiei várias variações desse tema com os meus «homens injustamente acusados». E repare como o seu item é propício à presença de uma culpa interior, inexplicável, que se abate de algum lado. Por outro lado, sempre achei muito lisonjeiro que tivesse escrito: «Todos os homens no vertiginoso instante do coito são o mesmo homem. Todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare são William Shakespeare...»
- Bom, se me é autorizado o trocadilho, em relação à primeira parte, foi uma forma de meter prematuros e retardados, filhos e pais, no mesmo baralho, dado que a substância de que somos feitos é o tempo. Freud que me desculpe... - Eu prefiro a sugestão de que nós, os gordos, temos o verbo, a maleabilidade e o «wit» de Shakespeare. Sempre que a sra. Hitchcock referia a necessidade de eu fazer dieta, eu lembrava-lhe que era o autor de Falstaff...
- É engraçado que refira a questão da autoria, porque creio que temos ambos uma visão algo impessoal da criação que não tem sido comparada. Para mim, sempre foi claro que a figura do leitor, tais como as acções de reler e traduzir, são parte da invenção literária: o leitor sintoniza-se com as emoções do texto e é ele quem comanda o ritmo da narração. O que o Hitch preconiza com a invenção do «suspense»...
- Como assim?
- Lembra-se de ter dito: «É indispensável que o público esteja perfeitamente informado dos elementos presentes, de contrário não há 'suspense'»? Trata-se, segundo as suas palavras, de dar ao público uma informação de sob a mesa onde um casal estende um mapa e planeia um itinerário para as suas férias há uma bomba-relógio. O drama gera-se nas expectativas, na ansiedade do espectador...
- Bom, é pelo menos cúmplice...
- Participa na construção do drama.
- Não sabia que tinha visto os meus filmes. Pensei que tinha deixado de ir ao cinema.
- Pelo contrário. Vou acompanhado e contam-me. E, como você transmite em primeira mão os dados aos espectadores, eu sinto a vibração e imagino o que se vai tramando na tela.
- Compreendo.
- Ao princípio, ia com uma senhora que... via. Depois, passei a ir com invisuais. Com ela, sentia-me como se estivesse com um papagaio que continuamente me corrigia a acentuação das palavras e a gramática...
- Tem razão. Eu também sou absolutamente contra a tirania da verosimilhança. Sempre disse que um crítico que puxa da muleta da verosimilhança é porque não tem imaginação...
- Gosto muito do «slogan» que utilizou para Os Pássaros: «Há filmes que são fatias de vida, os meus são fatias de bolo!»
- Que bolo seria o seu?
- Pão-de-ló. Uma textura, uma massa, um sabor uniformes, mas que nunca desiludem.
- Falando agora mais seriamente, há um aspecto na sua literatura que sempre me atraiu.
- Diga.
- O medo. A defesa que faz do medo. Parece-me coisa de verdadeiro poeta.
- Hitch, não estou a segui-lo...
- Há um conto seu em O Livro de Areia, salvo erro, onde a personagem descobre que tem um monstro na cave. Está lá à procura de qualquer coisa e dá por aquela presença inominável. Corre pelas escadas acima, com o monstro na peugada. E no último momento, quando está a chegar à porta, não resiste e olha para trás, para lhe ver o «rosto». E o Borges suspende aí a narração. Ou seja: cada leitor acrescentará o seu monstro à emoção, desenhará a sua forma...
- Nunca vi esse conto nessa perspectiva... Um tigre é um tigre... Qual é a vantagem?
- A vantagem é a de cada um inventar o medo. Por exemplo, a sensação excitante de medo que as pessoas experimentam na montanha-russa, quando o carro se aproxima de uma curva fechada, deixaria de existir se elas pensassem seriamente na possibilidade de o carro descarrilar. É como nos filmes: o espectador precisa de saber, mesmo que inconscientemente, que as personagens do filme não pagarão o preço do medo, isto é, que o actor não fica seriamente ferido quando é baleado... que o medo que sentem é uma convenção...
- Então para quê embarcar na ilusão?
- Exactamente, a ilusão do medo é necessária, porque nos torna mais humanos. Levei a vida a tentar explicar que o medo nos é vital. Para o prazer e para o respeito mútuo, a chave do medo abre portas... Há que ter a coragem de ter medo.
- É divertido e sério, como de resto a sua obra.
- Isso dito por si, convém-me. Continue...
- Li um livro maravilhoso de um filósofo de Barcelona, o Eugenio Trias, que lhe dedica páginas admiráveis...
- Mau. A última vez que estive com o Kant até o «molotoff» esmoreceu. Um homem que quer conceber o infinito a contar pelos dedos...
- Vê como nos entendemos? Ia-lhe falar da percepção do infinito nos seus filmes. O Trias descreve minuciosamente a acção de Vertigo, segue-a plano a plano. E demonstra que tanto na cena em que Scottie a espreita no espelho da florista como na compulsão do fotógrafo, em Janela Indiscreta, para multiplicar as escalas no plano fixo da fachada, você concebe o espaço como um labirinto. Ora o labirinto é o primeiro átrio para quem se atreve a pensar o infinito. E, só de uma assentada, temos o duplo, o espelho, o labirinto, o infinito, tudo temas borgeanos...
- Estou comovido. O Borges importa-se que, para a sobremesa, peça «tigre au vin»?

A entrada de Jessica Rabitt no British Bar teve o efeito de um buraco negro: contraiu quase tudo em redor. Ainda que a sombra de Hitch se mantivesse crivada de pequeníssimos clarões e Borges mantivesse a sua serenidade imperturbável, com as mãos apoiadas num castão invisível, porque a bengala tinha caído ao chão...
E foi aí que descobri que eu, que tantos homens fora - inclusive aquele em cujos braços desfalecia Matilde Urbach -, era, neste sonho, Roger Rabitt.

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