terça-feira, 12 de abril de 2011

CARTA A UM JOVEM ESCRITOR 3

man ray
O avô de Saramago era pastor e analfabeto. O neto acompanhava-o muitas vezes na jorna, aprendendo com ele os trabalhos do campo, e ia descalço. José Saramago andou muitas vezes descalço até aos 14 anos, por pobreza. Conheceu com a palma dos pés a aldeia e as terras em redor. Era um pormenor que desconhecia. E que ligo à confissão do escritor já famoso em todo o mundo, quando em Março de 95, numa sessão pública dedicada ao tema «Ficção: Processos e modelos na narrativa», José Saramago, com a experiência de 22 livros já escritos declara com franqueza que não sabia em que consistiria isso que se designava por «modelo na narrativa». Só parece uma blague para quem não lhe leu a obra, de facto, o rapaz habituado a reconhecer a variedade dos terrenos a pé descalço não pode em crescendo agarrar-se a um formato, a uma fórmula. A memória do solo vário da sua infância não admite a imposição de um único tipo de formato. E de facto quem lê Manual de Pintura e Caligrafia, Levantado do Chão, Memorial do Convento, O ano da Morte de Ricardo Reis, História do cerco de Lisboa, O Evangelho…,  Ensaio sobre a Cegueira, ou A Viagem do Elefante, encontra constantes mas também terrenos vários, conteúdos muito diferentes. Repare-se só na extrema imprevisibilidade que vai de Levantado do Chão a Memorial do Convento e quem adivinharia que a este se seguiria O ano da morte de Ricardo Reis, e quem depois de Jangada de Pedra esperaria por O Evangelho segundo Jesus Cristo? Como se, estilo à parte, coabitassem vários rios num, múltiplas facetas. Uma vez perguntaram a Saramago quem eram os seus autores do século e ele não hesitou: Kafka, Fernando Pessoa, e Jorge Luís Borges. Ora o que é surpreendente e lhe faz a riqueza é que quanto mais leio Saramago mais fico convencido que ele é a liga que resultou da fusão dos três: o sentido do absurdo e da parábola de Kafka, a polifonia de Pessoa, e a metafísica, os labirintos e o jogo lúdico de Borges. Com a simplicidade de quem respira.
Primeiro exercício: andar descalço duas horas por dia para perceber a diferença na natureza dos terrenos e como exigem um pisar diferente, umas vezes sobre a ponta dos dedos, outros espalmando a palma, e até sobre os calcanhares. Sondar os ritmos, consoante o tipo de solo e cheirar a terra, reapropriando-se do seu olfacto.
Segundo exercício: calçar-se enquanto despe a roupa. Ir à janela sopesar o vento. Se a vizinha da frente não gritar ao ver as lufadas de ar que lhe assaltam os badalos, continuar à janela até sentir frio. Então, enregelado, sentar-se diante do ecrã e bater nas teclas até que o corpo aqueça.
Pode ser que resulte.



4 comentários:

  1. Li, depois de me ter falado nele, o magnífico texto lido pelo José Saramago na atribuição do Nobel em 1998. Aí, descreve como os vários momentos de sua vida contribuíram para a construção da sua obra.
    Os momentos com o avô é dos mais destacados; há também as histórias que lhe eram contadas, o sacrifício desses seus avós para assegurar a subsistência etc., tudo factos que soube representar, com a mestria que conhecemos, nos seus livros.

    Tavares B.

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  2. Sobre o pé descalço do Saramago, será interessante saber-se que na Azinhaga do Ribatejo, a terra dele, era muito vulgar verem-se homens adultos de pé descalo na rua, coisa que não acontecia, por exemplo, na aldeia vizinha, Pombalinho do Ribatejo.
    Miúdos, quase todos andávam descaços,no meu tempo, tanto num lado como no outro. O Saramago deixou por certo de andar descalço quando foi para Lisboa com os pais. Mas nas idas, de férias, à Azinhaga,já quando adolescente, voltava a andar descalço na rua, porque gostava, como ele a certa altura o disse.
    Um abraço, ó Cabrita.

    Guilherme Afonso

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  3. Um prtazer em "vê-lo" Guilherme. Um abração Cabrita

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  4. MUITO BOM ESSE TEXTO,COM O QUAL CONCORDO PLENAMENTE.
    Estou passando por aqui pela primeira vez , mas voltarei .
    ANTÔNIO,de Goiânia,Goiás -BRASIL

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